Desde 2013, três estados da
região Norte do Paraguai encontram-se em estado de exceção permanente, ocupados
por tropas das forças armadas. Designados originalmente para combate
emergencial ao Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo guerrilheiro que tem como
estratégia a realização de sequestros, os militares instalaram-se e passaram a
policiar de maneira contínua os estados Amambay, Concepción e San Pedro. A ação
de “pacificação” do território, que não tem data para acabar, não só não
resolveu o problema com o EPP, como gerou outros, não faltando denúncias, por
parte da população, de violações graves de direitos humanos. Na lógica de
guerra instalada, quem vive na região passou a lidar com medo e estigmatização
– em Assunção, as pessoas olham diferente quem vive no norte.
A tática de repressão pura e
simples não foi adotada apenas no Paraguai. A mesma lógica subsidiou ações em
diferentes partes do mundo, da ocupação dos morros do Rio de Janeiro por
Unidades de Polícia “Pacificadora” às intervenções militares internacionais
apresentadas como Missões de “Paz” e “estabilização” pela Organização das
Nações Unidas (ONU). Via de regra, tal política, que ganha espaço em meio à
ascensão do conservadorismo em diferentes partes, tem se revelado pouco
eficiente em termos de paz efetiva – como comprova a permanência de graves
índices de homicídios no Rio de Janeiro e o colapso total de países inteiros no
Oriente Médio ou a instabilidade política e social ainda presente no Haiti.
É contra essas políticas de
guerra que Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980, defende a
importância de desarmar consciências. Nesta entrevista concedida em meio ao
Fórum Social do Norte*, em Horqueta, município de Concepción no epicentro das zonas
em estado de exceção, o ativista argentino de 85 anos argumenta em favor da Não
Violência Ativa como melhor caminho para resistir à militarização do mundo.
Realizado pelo Serviço de Paz e Justiça (Serpaj), organização fundada por ele,
o evento de caráter pacifista reuniu cerca de 1.500 pessoas, incluindo
camponeses e camponesas de todo o país. A seguir, a entrevista.
Repressão e militarização ganham força no mundo como parte de um
discurso bastante conservador. Como contrapor essa lógica a partir do conceito
de Não Violência Ativa?
Primeiro, a violência que estamos
vendo é um problema cultural, incrementado muitíssimo pelos meios de
comunicação. Por meio dos filmes, pelo jornalismo, mas também pelas condutas,
temos uma cultura da violência. Desde criança, se aprende que a violência é
algo natural, que é viável. Para mudar isso há um eixo fundamental, que é
desarmar a razão armada. A violência baseia-se no poder, na dominação. Quem a
exerce quer se impor ao outro que é mais fraco pela força e, como diz Dom
Hélder Câmara, esse arcebispo amigo de caminhada pela América Latina, a mãe de
todas as violências é a mentira. A mentira exerce a violência porque faz crer o
que não é.
Nesse sentido, falar de uma Missão de “Paz” da ONU ou uma Unidade de
Polícia “Pacificadora” é algo emblemático, não? É semântica para minimizar
ações que são simplesmente intervenções militares.
Sim, Missões de “Paz” não têm
nada de paz. Trata-se de justificar a violência por meio da mentira. Foi o que
George Bush, ex-presidente dos EUA fez com as Torres Gêmeas, com a invasão do
Iraque. Porque ele precisava da justificativa e da mentira, e foi uma mentira
coletiva, com os meios de comunicação, com toda a propaganda. É como agora com
Síria, Líbia, Afeganistão. Está tudo baseado em mentiras. Lógico que houve
reação de alguns setores, que reagiram violentamente e trataram de justificar
essa reação por meio de fanatismos religiosos, segundo os quais todos aqueles
que se opusessem teriam que ser combatidos porque isso seria anti-islâmico.
A Não Violência não tem nada a
ver com passividade, é uma dinâmica permanente de uma transformação social,
cultural, política e econômica. Não se deve reagir a uma violência com outra
violência porque isso não resolve o problema. Ficamos com duas violências, mas
não a solução do problema. Para saber desarmar a razão armada é preciso saber
escutar o outro, antes de mais nada escutar. Depois ver se há possibilidade de
abrir uma instância de diálogo. Se não se consegue, é preciso buscar um
intermediador, um moderador que ajude a resolver o conflito. Isso acontece com
os casais, com as famílias, as relações sociais e políticas, e até nas relações
entre países.
Há algum contexto em que a luta armada é válida?
Não creio na guerra justa, por
mais que os teólogos, os grandes professores teólogos como Santo Agostinho ou
São Tomás de Aquino falem em guerras justas. Para mim, nenhuma guerra é justa,
todas as guerras levam à destruição e à morte. Acredito, isso sim, em causas
justas, não em guerras justas. Um povo oprimido tem direito a rebelar-se contra
o opressor e há razão para isso. Há muitos caminhos, alguns que recorrem à
violência. Por exemplo, em Cuba, Fidel Castro, de Sierra Maestra, começa todo
um trabalho de resistência para se opor à ditadura de Fulgêncio Batista e ao
final triunfa. Cuba, depois de vários anos e de ver isso com claridade, não
recorre à violência para se sustentar, mas sim ao desenvolvimento cultural,
social, político. A economia, mesmo com o bloqueio dos Estados Unidos, segue
com dificuldade mas se sustenta por mais de cinquenta anos. Fazem não
violentamente, mas quando uma potência como os Estados Unidos de Kennedy tratam de invadir a Baía dos Porcos, Cuba
reage com as armas. Pense nas forças invasoras dos Estados Unidos, há uma
dinâmica entre as relações de forças. Muitas vezes, fala-se de situações
extremas. O que alguém faria ao ver um agressor está para matar um filho? Por
aí pode ser que se recorra a uma ação violenta, mas esse não é um eixo central,
é um momento que por aí encontrou esse caminho, não algo definitivo. O que fez
Mahatma Gandhi pela liberação da Índia tem vários aspectos. Tem o conteúdo
ético, religioso, social, mas também uma estratégia na relação de forças. Se
Ghandi se opusesse ao Império Britânico pelas armas, perderia.
Falando em extremos, pensando em um caso hoje, o que fazer se Trump
começar a concretizar muito do que disse que faria durante sua campanha em
termos de perseguições, de políticas claramente racistas? Já estão ocorrendo
marchas anti-Trump. Há um limite contra as ações fascistas?
Fundamentalmente a Não Violência,
é ação coletiva. É quando um povo toma consciência e diz “tenho que resolver
esse conflito, mas de outra forma, não com o mesmo método do opressor”. Sem
isso, muitos oprimidos, quando triunfam, tornam-se opressores. Tratam de
repetir os mesmos mecanismos. Por exemplo, a revolução, de que tanto se fala, é
uma roda. Estão abaixo os oprimidos, quando gira, os debaixo terminam em cima.
Mas, se não há mudanças, se não se avança, repete-se o mesmo.
Em meio à crise de democracia no mundo, muita gente questiona os
formatos de poder. Em sua apresentação no Fórum Social Norte, você defendeu uma
democracia mais participativa do que representativa, com mais transparência
sobre as estruturas de poder. Trata-se de fazer com que a democracia se
radicalize?
A democracia é um sistema que
significa direito e igualdade para todos, mas que hoje não atende a todos, e
sim a alguns. Depois que votamos, ficamos em um estado de indefesa jurídica
total. Não temos a capacidade de modificar absolutamente nada e o governante
sabe disso e aproveita. O governante tem que ser um servidor do povo e não se
servir do povo para seus interesses. Na democracia representativa, o povo não
tem capacidade de mudar isso; mas em uma democracia participativa sim. Por meio
de plebiscitos, consultas populares e representações de diversos tipos, pode-se
chegar a controle ou mesmo revogar o mandato, quando necessário. Por isso digo,
a violência sempre se baseia no poder e na mentira.
Rosa Luxemburgo dizia que não existe democracia sem socialismo e não
existe socialismo sem democracia.
Claro, estou totalmente de acordo
com o socialismo de redistribuição dos bens, da participação social, cultural.
Que tipo de democracia queremos? Falei hoje das utopias. Thomas Morus, quando
fala dessa famosa ilha chamada Utopia [nome do livro de Morus], descreve os
utopianos organizados por meio de uma participação interativa. Creio que é
isso, e o socialismo tende a isso. Não é fácil porque requer uma tomada de
consciência através da educação. Nós fomos educados para uma cultura de
violência. Os protótipos que nos apresentam são todos heróis e guerreiros.
Quando nos ensinam História, as épocas se dividem pelas guerras e revoluções,
não pelos avanços sociais, culturais, políticos. A cultura que temos é de
violência. Desarmar a consciência armada é gerar consciência crítica e valores
nos jovens, para que possam discernir, não é impor-lhes um modelo.
Uma educação Não Violenta não tem
nada a ver com a passividade, é uma dinâmica permanente de relações humanas
entre as pessoas e os povos. O ser humano tem necessidades básicas – saúde,
educação, habitação, trabalho – para poder ser feliz, e tem também o sentimento
de pertencimento, uma identidade, valores, religião. Existe uma diversidade de
pensamentos filosóficos, culturais, políticos, religiosos e temos que alcançar
a convivência na diversidade e não na uniformidade. A riqueza dos povos é a
diversidade. A mais perigosa dos monoculturas é a monocultura das mentes. Nós
temos parâmetros que a sociedade nos impõem, que cortam a liberdade de decidir.
Quando fala em diversidade, há relação com o conceito do Bem Viver,
não?
Sim, claro. Exatamente.
Em pelo menos dois países,
Equador e Bolívia, onde houve uma aproximação com esse discurso, onde foram
adotados Estados Plurinacionais e toda uma linha de institucionalização da
diversidade, depois de um momento inicial, os governos se afastaram dos
princípios. Mantiveram o discurso, mas adotaram práticas que não tem nada que
ver com Bem Viver. E há também casos como os dos governos progressistas que
entraram em crise e há críticos que relacionam o fracasso de muitas estratégias
a partir das políticas baseadas muito mais em consumo do que em cidadania. Há
os que fazem essa mesma crítica à União Soviética, por exemplo.
São processos de aprendizagem.
Por exemplo, quando se fala de desenvolvimento, trata-se do uso justo das
necessidades do ser humano. A gente precisa da mineração, dos combustíveis,
mas, quando há consumismo, existe um abuso. Recordo do meu tio, que era
correntino [de Corrientes, na Argentina], que, nas Cataratas do Iguaçu, me
ensinava a pescar os dourados, peixes lindos. Ele me ensinou a pescar com miolo
de pão, fazer bolinhas de pão, jogar na água e depois com um anzol tirar o
dourado. Mas ele me dizia: não se esqueça que tem que pescar o que vai comer.
Não mais que isso. Se vai comer um, pesca um. Se dois, dois. Não mais. Porque
dos mesmos peixes dependem outros pescadores. Uma coisa é o desenvolvimento,
outra a exploração. O que fazem as grandes corporações com a soja ou com as
megamineradoras é exploração, é privilegiar o capital financeiro em detrimento
da vida dos povos. Isso prejudica a vida dos povos. Veja os agrotóxicos. Os
agrotóxicos rompem a biodiversidade, a cadeia da vida. É curioso ver que na
monocultura não há pássaros, não há sapos, não há mosquitos, não há nada. Não
há alimento.
Quem defende agrotóxicos argumenta que, em termos de eficiência, eles
permitem produzir mais rápido, com velocidade.
Creio que é isso que está
provocando hoje danos mundiais. Porque os agrotóxicos esgotam a terra,
contaminam a lavoura, a vida, os animais, os vegetais. Na Argentina uma empresa
de mineração, a Barrick Gold contaminou diferentes rios, mas isso não interessa
às empresas [mais informações sobre esse caso e outros relacionados disponíveis
na publicação Na Justiça]. As empresas querem ganhar dinheiro, o ser humano não
conta. O ser humano, como diz o Papa Francisco, está submetido a uma cultura de
descarte. O ser humano já não conta, cada vez é menos necessário pela
tecnologia. A fábrica que antes necessitava de cem operários hoje faz o mesmo
com dois.
Com a situação política atual mais dura, com os avanços conservadores,
com esse contexto econômico, como falar de utopia? Como manter a esperança?
Dentro de todo esse caos mundial
há lugares em que as pessoas trabalham com alternativas. Alternativas
agrícolas, por exemplo, agroecologia, criação de bancos de sementes naturais,
as chamadas sementes crioulas. Esse processo ainda não tem uma dimensão
política, mas tem sim uma dimensão social. É preciso traduzir tudo isso em
alternativas políticas. Hoje os dirigentes políticos não estão preparados para
isso como os cientistas, por exemplo. Fritjof Capra, um físico, começa a
descobrir como a ciência está unida à espiritualidade e escreve O Tao da
física. E há um livro em que ele fala sobre a medicina holística que se chama O
ponto de mutação. Na medicina tradicional, se te dói o fígado, te curam o fígado
mas destroem todo o resto. O médico não se preocupa em ver que a dor no fígado
tem a ver com todo o organismo. Nós temos um pensamento cartesiano, analítico,
que aportou muito, mas que é muito fragmentado. Hoje temos que ter um
pensamento holístico, integrador. Nós somos parte de um todo, e esse todo é
parte da gente. É como compreendemos não só a mãe terra, mas o cosmos. Havia um
paleontólogo francês, Teilhard de Chardin, que falava da evolução do ser
humano. Ele trata da biogênese, da antropogênese e da cosmogênese. Ou seja, o
ser humano não está limitado e completo, nós estamos em um processo de
construção. Se estamos destruindo a biogênese com tudo isso que falamos,
estamos nos prejudicando. A evolução não vai ser natural, mas sim forçada, como
uma semente da Monsanto. Na antropogênese, o ser humano está em um processo
evolutivo, não só fisicamente, mas de consciência. A cosmogênese é quando um se
considera parte do todo. Por isso, quando alguém diz, somos filhos das
estrelas, faz sentido. O ser humano é filho das estrelas, tudo que existe é
filho dessa famosa explosão mundial. Chardin sintetiza a espiritualidade
também. O ser humano evolui espiritualmente também, com todas as suas
contradições. Más há uma consciência que é de toda humanidade.
Quando fala em espiritualidade, sua perspectiva é diferente da do
fundamentalismo, não só do islâmico, mas do fundamentalismo cristão também. No
Brasil, temos hoje avanços de linhas religiosas fundamentalistas. Há quem
analise esse fenômeno a partir dapercepção de que os políticos ignoraram e
deixaram de fazer trabalho de base e na política não existe vácuo. Grupos muito
fundamentalistas ganharam espaço entre o povo.
Sim, existe isso,
lamentavelmente. É o que eu designo como monocultura das mentes. É o absoluto e
depois o abismo. Se sai disso, não há nada. Os fundamentalismos são como
agrotóxicos, contaminam-se uns aos outros. É isso que se vê também nas forças
armadas, na polícia. Eu muitas vezes tento imaginar que um ser humano torture,
mate e depois lave as mãos, chegue em casa e ame a mulher, os filhos? Isso é a
suspensão da consciência. É o que acontece quando todo um grupo faz o mesmo. É
o que aconteceu com os nazistas, com as ditaduras latino-americanas, com os
soldados que vão combater no Oriente Médio. São fundamentalismos. Se todos
fazem o mesmo, violam, matam, torturam, a culpabilidade se dilui no coletivo. É
incrível como isso se dá. Uma tomada de consciência, uma compreensão da Não
Violência, não é somente quando se está diante de um conflito, mas na forma de
viver, na forma de compreender a realidade. A Não Violência não se aplica
somente nos conflitos; quando se chega a um conflito a pessoa já se sabe o que
fazer.
Viver é um ato político.
Sim, e isso tem a ver com o olhar
que cada um tem para com os demais e consigo mesmo. É preciso colocar em
prática tudo isso. Eu muitas vezes falo de Henry David Thoreau, que escreveu A
desobediência civil, ele é o Não Violento que inspirou Gandhi, Luther King.
Ele, em algum momento, diz que toda pessoa amante da liberdade deve ser
respeitosa com a lei. Porque a lei em uma sociedade é necessária. Porém, em
seguida, Thoreau diz: cuidado, nem toda lei é justa. Devemos resistir às leis
injustas, é preciso rebelar-se contra as leis injustas até sua total nulidade.
Ele negou-se a pagar os impostos da guerra de Estados Unidos contra México,
porque dizia que não poderia dar aval a uma guerra injusta. Por isso foi preso,
mas manteve a posição de não aceitar uma injustiça.
Para finalizar, quais são as suas principais referências?
Para mim, a espiritualidade.
Quando alguém lê o Evangelho, vai descobrindo as coisas. Além disso, há os
exemplos de vida de muita gente que conheci e que também estudei como Gandhi,
Luther King, Cesar Chavez [líder sindicalista de trabalhadores rurais mexicanos
nos Estados Unidos], Hélder Câmara. Há Leônidas Proaño, bispo dos índios do
Equador. E há o trabalho com as comunidades de base, indígenas, camponeses,
homens, mulheres. É com essas vivências que uma pessoa aprende. Se a gente não
muda e aprende, acaba entrando nesse caminho de autodestruição. O apocalipse
está sendo gerado pelo próprio ser humano quando destrói a natureza, a vida, o
próximo. A gente pode ser feliz, não estamos aqui para sermos desgraçados,
mas para sermos homens e mulheres
livres. Como transformamos a cultura de violência em uma cultura de paz? A
cultura de paz não é ausência de conflitos, mas sim a cultura das relações. É
preciso trabalhar, estudar, aprender, sempre respeitando a diversidade. Se não
respeitamos, entramos nesse caminho sombrio que não sabemos onde vai dar.
Pela história sabemos, não?
Claro. Há um escritor argentino
Leopoldo Marechal que diz que muitos se metem nos labirintos e depois não podem
sair. Mas dos labirintos a gente sai por cima. Genial. Así es.
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