No Brasil, em larga medida, os pobres são pobres porque os ricos são
ricos. Vivemos enredados no que o economista indiano Vijayendra Rao chamou de
"armadilha da desigualdade": a cristalização da desigualdade nas
instituições, nas leis, nas políticas públicas e na vida social do país,
reproduzindo-se em suas várias dimensões (renda, riqueza, oportunidades, poder
e status social) e favorecendo os mais ricos em prejuízo dos mais pobres.
São exemplos dessa armadilha os traços regressivos (isto é, pró-ricos)
dos nossos sistemas tributário, previdenciário, de saúde, de moradia e
educacional. Enquanto os ricos na Suécia, na Alemanha e Japão chegam a pagar
quase ou mais da metade de seus ganhos em imposto de renda, no Brasil a
alíquota mais alta é de apenas 27,5%. Para piorar, o IR tem aqui seu potencial
redistributivo mitigado pelas deduções obtidas pelas classes mais favorecidas
em despesas médicas e educacionais privadas e pela facilidade com que escapam
desse imposto com medidas legalmente válidas, como a criação de empresas ou
mediante simples sonegação. Não bastasse isso, parcela significativa dos
tributos cobrados no país (60%) sobrecarrega injustamente os mais pobres porque
incide sobre o consumo, com percentuais idênticos para todos. Como os pobres
gastam parte maior de sua renda (quando não toda ela) em consumo, pagam
proporcionalmente mais impostos desse tipo que os ricos.
Nosso sistema previdenciário também é altamente regressivo, favorecendo
desproporcionalmente os funcionários públicos de alto escalão do Executivo,
Legislativo e Judiciário. Esses grupos, que já recebem bons salários durante a
carreira, continuarão a ter direito a aposentadorias integrais (ou quase) até
que o regime de previdência complementar instituído pela reforma constitucional
entre em vigor, o que já tarda mais de 10 anos. O resto da população,
incluindo-se aqui os mais pobres, aposenta-se sob o regime geral da previdência
social (RGPS), ganha em sua maioria um salário mínimo ou sequer tem acesso à
previdência por trabalhar no setor informal.
A desigualdade medida pelo
Gini não é muito adequada
para revelar a
verdadeira
distribuição da renda no Brasil
No campo da educação, nossas escolas públicas padecem de recursos
humanos e materiais adequados, o que nos é tristemente lembrado pela péssima
atuação do Brasil em testes internacionais, como o Pisa. Como consequência, o
ensino superior público, a despeito dos recentes avanços observados, é
praticamente reservado aos estudantes cujas famílias podem pagar escolas
privadas.
Na saúde, para os 80% da população que dependem do SUS o gasto per
capita é quase dez vezes menor que o gasto dos 20% que têm acesso à saúde
privada. Não surpreende, portanto, que nossos indicadores de saúde como
mortalidade infantil e expectativa de vida estejam próximos aos dos países mais
desenvolvidos do mundo para os mais ricos, enquanto para os mais pobres se
aproximem dos patamares de países pobres da África.
Essas discrepâncias têm como determinantes não só a desigualdade de
acesso a serviços de saúde de qualidade, mas também à educação, à moradia
adequada, incluindo saneamento básico, que ainda é inexistente ou inadequado em
mais de 30% dos domicílios brasileiros (cf. Censo do IBGE 2010). Já as cidades
brasileiras têm sua configuração espacial, de transportes, lazer e cultura
voltada para facilitar a vida dos ricos, deixando os bairros mais pobres
desprovidos dos mais básicos equipamentos públicos. Igualmente mitigado nas
políticas urbanas é o componente progressivo do IPTU, o que torna letra morta a
função social da propriedade garantida pela Constituição.
São essas práticas, leis, instituições e políticas públicas que
precisam sofrer mudanças estruturais para que a armadilha da desigualdade seja
desarmada. E é por isso que a queda da desigualdade de renda a que assistimos
no Brasil na última década - celebrada pelo governo, institutos de pesquisa e
por grande parte da mídia nacional e internacional - deve ser comemorada, mas
sem exagero.
Segundo dados do Ipea, entre 2000 e 2010 a desigualdade diminuiu em 80%
dos municípios brasileiros, pois a renda dos 20% mais pobres cresceu 217%,
enquanto a dos 10% mais ricos cresceu 60%, algo sem dúvida positivo. Dados da
mais recente Pnad do IBGE confirmam essa tendência, tendo a desigualdade
alcançado o seu patamar mais baixo da história recente em janeiro de 2012 (Gini
de 0,519).
Mas esse nível de desigualdade, além de ainda muito alto (continuamos
entre os países mais desiguais do mundo), leva em consideração principalmente
os rendimentos do trabalho formal e transferências públicas, deixando de fora,
por limitações de dados, a maior parte dos rendimentos do capital (cerca de 80%
do rendimento dos ricos). A desigualdade medida pelo Gini não é, portanto,
inteiramente adequada para revelar a verdadeira distribuição da renda entre
trabalhadores formais e informais, de um lado, e empresários, banqueiros,
latifundiários, proprietários de bens e de imóveis alugados, de outro. A
recente tendência de declínio da desigualdade, apesar de inédita e auspiciosa,
é em face disso, ainda muito tímida e não se apoia no ataque efetivo a nenhum
dos principais gargalos da armadilha da desigualdade acima apontados.
São apenas essas reformas, ou seja, a criação de um verdadeiro Estado
de Bem-Estar social, com leis, instituições e políticas públicas que minimizem
- em vez de sedimentar - as desigualdades existentes é que poderão tornar o
Brasil um país realmente igualitário e livre das mazelas sociais que a
desigualdade produz, como a violência, a falta de coesão social e os limites
para o crescimento econômico sustentável.
Num período em que a maior parte do mundo desenvolvido apresenta uma
tendência oposta, de aumento das desigualdades (como mostra o mais recente
relatório da OCDE (Divided We Stand: Why Inequality Keeps Rising), e o termo
"brazilianization" é frequentemente usado para se referir a esse
fenômeno, seria uma ironia histórica edificante se pudéssemos nos tornar um
exemplo de ações estruturais para promover a igualdade.
Valor Econômico
Octávio Motta Ferraz é professor de Direito na Universidade de Warwick
(Reino Unido)
Diogo R. Coutinho, livre-docente em direito econômico e pesquisador do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, é professor na Universidade São
Paulo
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