O
cinema anuncia novos arranjos para o envelhecer e traz um olhar
irônico sobre essa relação familiar quase sempre conflituosa
ELIANE
BRUM - 15/04/2013 10h16 – Revista Época
Uma
sequência de filmes mostra que a velhice mudou – ou está mudando.
Isso diz bastante sobre o aumento da expectativa de vida, já que um
dos temas cruciais da sociedade contemporânea passa a ser como ser
velho nestes tempos. E faz com que atores e atrizes sem muita chance
de viver papéis desafiadores por conta da idade, muitos deles
obrigados a uma aposentadoria não desejada, passem a ter a chance de
interpretações magistrais, como foi o caso de Emmanuelle Riva e de
Jean-Louis Trintignant, no excepcional Amor. Ou tem levado atores
consagrados a se aventurar na direção depois dos 70, como fez
Dustin Hoffman no encantador O Quarteto. São filmes em que a velhice
é contada pelo olhar de quem a está vivendo e há várias formas de
pensar sobre o que está sendo dito, dentro e fora da tela. Minha
proposta é refletir sobre uma em particular: nos últimos quatro
filmes exibidos por aqui e que já estão ou devem estar chegando às
locadoras e às TVs por assinatura, os filhos ou estão ausentes ou
são uns atrapalhados, oscilando entre a boçalidade e a incapacidade
de dar conta da própria vida.
Em O
Excêntrico Hotel Marigold, o mais fraco deles, um dos casais
britânicos vai parar na Índia porque a filha gastou o dinheiro dos
pais numa aventura empreendedora na internet. Assim, precisam
encontrar uma opção mais barata de moradia, o que os leva ao
excêntrico hotel do título. Ainda que depois a opção se mostre
interessante, mesmo que por caminhos tortuosos, não foi uma escolha
num primeiro momento. E sim uma reação à atrapalhação da filha,
que se arriscou não com o seu próprio dinheiro, mas
(convenientemente) com o dos pais, o que também é uma marca da
nossa época.
No ótimo
E se vivêssemos todos juntos?, a filha do casal interpretado por
Jane Fonda e Pierre Richard é uma chata pretensiosa que só aparece
para (tentar) mandar nos pais e dar palpite na vida deles, para em
seguida desaparecer. Já o filho do Don Juan interpretado por Claude
Rich é muito mais participativo e francamente esforçado, mas o pai
tenta escapar de todo jeito das boas intenções filiais porque esse
filho só é capaz de enxergá-lo como alguém que vai quebrar a
qualquer momento – o que é verdade, mas está longe de ser toda a
verdade.
Em Amor,
a maravilhosa Isabelle Huppert está menos maravilhosa no papel de
filha do casal que se descobre velho de repente, numa manhã
qualquer, em um segundo. Esta personagem, às voltas com um casamento
que parece emocionante apenas pelas razões erradas, encarna a filha
perplexa diante dos pais. Perplexa e apavorada diante da fragilidade
e da finitude dos pais. Ela tenta intervir, ela tenta se impor, ela
tenta dizer e fazer coisas sensatas – e tudo falha. Ela tenta
principalmente ser potente, mas mal dá conta da própria vida. Seu
diálogo com o pai, enquanto a mãe não sabe de si, é uma das cenas
antológicas desse filme belíssimo.
Em O
Quarteto, que se passa num “lar para velhos” que foram cantores e
músicos antes de perderem a voz, a memória ou a saúde, os filhos
não estão lá. Surgem, ao fundo, nos dias de visita, mas nenhum dos
personagens principais parece ter filhos. Artistas de ópera, eles
possivelmente não tiveram tempo para a maternidade ou a paternidade.
E esta não parece ser nem uma questão, nem um motivo de
arrependimento, o que é bastante interessante. Se tiveram filhos, o
fato não foi tão marcante a ponto de ser citado, o que de novo é
bem interessante. O quarteto é primeiro um trio, que se ampara e se
diverte na velhice como os amigos de uma vida inteira que foram e
ainda são. A quarta personagem, que chega para fechar o grupo, é
uma diva atormentada pela perda da potência, que no seu caso se
expressa pela voz que falha. Ela terá de descobrir que pode cantar
mesmo com uma voz que não é – nem jamais voltará a ser – a da
juventude. E para isso terá de amarrar alguns fios esgarçados do
passado.
Só estou
citando os últimos filmes, mas antes destes já tivemos outros em
que os filhos aparecem ora perdidos, ora oportunistas na vida dos
pais, como no delicioso Elsa & Fred. O que vale a pena perceber é
que, cada vez mais, ao contar a velhice pelo olhar de quem a vive,
conta-se também da perplexidade dos filhos apatetados diante dos
pais. Não mais os pais velhos como um estorvo para filhos que mal
dão conta da sua vida, sem saber se os enfiam num asilo ou os
carregam para casas ou apartamentos onde mal cabem eles.
E sim
filhos atrapalhados ou boçais que, quando aparecem, tornam-se um
estorvo para os pais.
A ponto
de em E se vivêssemos todos juntos? deixarem o filho de um para fora
do portão e ainda lhe darem um banho de mangueira para que vá
embora de uma vez e não volte tão cedo. São velhos poderosos – e
que reivindicam seu poder mesmo em uma condição de fragilidade –
os do cinema. Poderosos porque não se deixam apartar de sua história
na velhice, ao contrário.
Apropriam-se
dela e a usam para viver com intensidade seus últimos capítulos,
apesar das inevitáveis perdas e limitações.
Cabe
esclarecer que esta questão, a dos filhos diante da velhice dos
pais, que aqui se torna a principal, nos filmes é secundária,
quando não inexistente, o que também é muito significativo. Como
filha de pais que envelhecem, eu me identifico com esses filhos
perplexos e atrapalhados. Como uma mulher que envelhece, me
identifico com esses velhos, nos quais me espelho para o futuro não
mais tão distante. Em qualquer um dos casos, consigo encontrar
discernimento para perceber o quanto é sensacional que os filhos,
que se acham tão centrais na vida de seus pais, a qualquer tempo,
sejam colocados no seu devido lugar.
“Minha
mãe (ou meu pai) virou criança.” Esta frase, corriqueira na boca
de filhos que parecem exaustos, me provoca alguma desconfiança. Soa
mais como uma tentativa de potência de filhos que estão se sentindo
bem impotentes. Ou soa como uma tentativa de mostrar que sabem o que
fazem ou para onde vão, quando de fato se encontram completamente
perdidos. Até porque é uma marca do nosso tempo o retardamento da
vida adulta, de preferência para sempre. E a velhice dos pais, os
adultos por excelência, afunda todas as esperanças inconfessadas de
ser adolescente para sempre em pelo menos um lugar no mundo.
Sinto
compaixão por esses filhos, como senti pelos filhos dos velhos do
cinema. Como senti por mim mesma à certa altura. Ao perceber que
meus pais estavam envelhecendo, em determinado momento achei que
tinha de assumir também o comando da vida deles. Considerei que,
para ser uma boa filha, tinha de ter todas as respostas. Ou,
invertendo o lugar, me apropriar do famigerado “eu sei o que é
melhor para eles”. Aos poucos fui percebendo que estava me tornando
uma chata pretensiosa. Com tanto medo que eles quebrassem que queria
carregá-los no colo, mas minha estropiada coluna vertebral mal dá
conta de sustentar meu próprio peso.
Com a
gentileza que lhes é peculiar, meus pais escutavam meus palpites e
minhas pregações e, claro, faziam exatamente o que queriam. Devagar
fui me dando conta de que era só o que faltava ter vivido e
experimentado tanto para chegar à velhice e ter de suportar uma
filha tentando mandar neles. Percebi que o importante era estar por
perto não só para o que fosse preciso, mas pelo prazer da
companhia, e continuar capaz de escutá-los. Se precisam da minha
ajuda, eles mesmos me dizem – não só com palavras, mas de
maneiras mais sutis. E se fazem coisas que eu considero mais
arriscadas, tanto a decisão quanto o risco continuam sendo deles,
como sempre foram. Não por minha majestosa concessão, mas porque
não tenho nenhum direito de impor qualquer vontade. Se depois de me
tornar adulta eu nunca permiti que meus pais interferissem de forma
autoritária na minha vida, por que é que eu me acharia no direito
de me meter de forma autoritária na deles quando estão
envelhecendo? Escutar de verdade ainda é o começo e o fim de
qualquer relação de respeito mútuo – e de amor.
Mas nós,
os filhos, nos atrapalhamos mesmo. E acho muito divertida a ironia
com que somos tratados nessa sequência de filmes, mesmo quando não
estamos. (Como assim não estamos, nós, tão centrais na vida dos
pais? Que horror!) Alguns se atrapalham porque se confrontar com a
velhice dos pais é se confrontar com a certeza de que não há mais
jeito de escapar da vida adulta. E, para quem achou que poderia
continuar sendo filho para sempre, é uma complicação virar gente
grande de uma hora pra outra. Ao tentar dar ordens aos pais, esses
filhos na verdade estão dizendo: “Não me deixem sozinho nesse
mundo tão ameaçador. Não me desamparem!”. E a irritação que
manifestam diante das limitações dos pais muitas vezes é um jeito
tosco de disfarçar o pavor que sentem diante do desamparo iminente.
Isso para alguns.
Para
todos a velhice dos pais anuncia a própria velhice. É talvez o
primeiro grande confronto com a fragilidade e com a finitude. Os
filhos que olham aterrorizados para os passos claudicantes dos pais
não temem apenas que eles caiam, mas principalmente que serão os
próximos a ter pernas que vacilam. Ainda que não confessem nem para
si mesmos, talvez seja este o maior horror. E este é um momento bem
periclitante da vida. E quando isso se dá por volta dos 40, 50 anos,
o confronto acontece quando o corpo está dando os primeiros sinais
inequívocos de que já não somos tão jovens. É um duplo desafio,
a velhice dos pais e o anúncio do próprio envelhecer. Que nem se
compara, e isso também é preciso lembrar, com o desafio abissal que
é ser velho – e ser velho nesse mundo em que, além de todas as
dificuldades da idade, é preciso brigar para ser respeitado. E
escutado.
Como já
contei aqui, compartilho com um grupo de amigos o projeto de
envelhecermos juntos num condomínio construído por nós em uma
cidade pequena perto de uma grande. Uma cidade pequena por ser mais
amigável a quem tem limitações físicas, sem contar que perder o
pouco tempo de vida que resta empacado no trânsito não parece uma
boa ideia. E perto de uma grande porque queremos continuar indo ao
cinema, ao teatro, às livrarias e aos cafés e restaurantes, e numa
cidade maior as alternativas gratuitas ou de baixo custo de eventos
culturais são mais promissoras para quem vive de aposentadoria.
Nossas
casas terão fundos para um pátio comum, para o caso de querermos
nos encontrar, e frente individual, para a rua. O pacto, já antigo
entre nós, parte da ideia de envelhecer no mundo – e não apartado
dele, como acontece com a velhice asilada – e perto de quem sabe de
nós. Além de nos dar a possibilidade de amparar as dificuldades um
do outro e de baratear os custos de manutenção. Neste sentido, nos
aproximamos dos personagens de E se vivêssemos todos juntos?, mas
com um pouco mais de privacidade.
Tenho
encontrado gente na mesma faixa etária com projetos semelhantes com
o seu grupo de amigos. E acredito que esta também é uma mudança
importante. Acho que a minha geração está diante dessa questão
como nenhuma outra. E tem aprendido algo importante com sua própria
perplexidade diante da velhice dos pais. A questão dos meus pais,
que sempre viveram com salário de professor, o que todo mundo sabe o
que significa no Brasil, era fazer uma poupança para não depender
dos filhos na velhice. A frase clássica dos pais bacanas, que hoje
estão nos 70, 80 anos, é: “Não quero dar trabalho para os meus
filhos dependendo deles”. Ou: “Não quero incomodar os meus
filhos”.
A frase
da minha geração – e que já se anuncia na boca dos velhos do
cinema – é outra:
–
Incomodar os meus filhos? Nem me importaria. O que não quero é que
os meus filhos me incomodem!
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