Literatura, uma ciência exata
Suponha que a literatura existe por um motivo biológico crucial: para
permitir que o ser humano simule situações e aprenda com elas. Esse
mecanismo cognitivo permite que você viva a experiência de seduzir a
mulher de um homem poderoso sem correr nenhum risco, por exemplo, ou
vivencie uma grande batalha sem se ferir. Mais que um universo
imaginário onde nos lançamos por puro prazer, a narrativa pode ter um
papel importante na evolução.
Essas e outras teorias do professor de literatura Jonathan
Gottschall, do Washington & Jefferson College, a 48 km de
Pittsburgh, na Pensilvânia, integram a mais nova investida das ciências
exatas no campo das humanas. Esse casamento causou polêmica alguns anos
atrás e ainda é alvo de críticas, como frequentemente ocorre no
surgimento de tendências inovadoras na interpretação da subjetividade
literária. Considerada por alguns uma ameaça ao progresso obtido por
tendências contemporâneas como o pós-estruturalismo e o novo
historicismo, essa tendência vem atraindo interesse crescente do público
e das editoras.
Gottschall ficou mais conhecido no Brasil recentemente por sua
experiência de imersão em esportes como o vale-tudo, numa tentativa de
compreender a fascinação pela violência. Gottschall lançou em abril o
livro "The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human" (Houghton
Mifflin Harcourt, 272 págs., US$ 14,45) em que emprega uma abordagem
mais amigável ao leitor comum para explicar suas teorias sobre os
efeitos da literatura e seu papel na evolução do homem. Para o público
acadêmico, Gottschall lançou em maio "Graphing Jane Austen: The
Evolutionary Basis of Literary Meaning" (Palgrave Macmillan, 318 págs.,
US$ 74,79), em que se uniu a outros pesquisadores para provar que os
romances da britânica Jane Austen (1775-1817), seja por meio de suas
personagens ou tramas, exibem características darwinistas importantes
que podem ajudar a decifrar a verdadeira função da literatura.
As histórias sempre mudaram o mundo, do
abolicionismo inspirado por "A Cabana do Pai Tomás" ao belicismo de
"Minha Luta", de Hitler
Em "The Storytelling Animal", Gottschall procura explicar uma das
grandes perguntas a que chegou em seus estudos: por que os seres humanos
criam histórias?
"A narrativa é tão básica para nossa existência, está
tão presente em nossas vidas, que a maioria de nós não percebe. A
narrativa, do ponto de vista puramente biológico, parece uma grande
perda de tempo, passamos tanto tempo de nossas vidas em mundos
imaginários. Então por que fazemos isso?", questiona.
Com base na teoria evolucionista, Gottschall propõe a hipótese da
simulação para explicar a importância da narrativa. Enquanto alguns
acham que a capacidade narrativa do ser humano é nada mais que um grande
acidente da evolução sem nenhum benefício ao seu processo, o professor
defende que há um benefício evolutivo oculto que ajuda a própria
humanidade a sobreviver. Para isso, a narrativa seguiria uma estrutura
habitual de problema e solução. Como um simulador que ensina alguém a
pilotar, a literatura permite que enfrentemos possíveis problemas e
achemos a solução. Assim, é possível viver a experiência e até aprender
com ela, mas sem correr os riscos.
"Um exemplo é que a leitura nos permite viver a experiência de
seduzir a mulher de um homem poderoso, algo perigoso, mas sem
enfrentarmos os riscos. Isso ainda é uma teoria, mas me parece que é
consistente com as evidências disponíveis", diz.
Como provar essa hipótese empiricamente é a questão crucial, admite o
pesquisador. Gottschall cita estudos da Universidade de Toronto
comandados pelo professor Keith E. Stanovich que tentam testar a
hipótese da simulação. Também já existem estudos mostrando que as
pessoas que leem mais se saem melhor em diversas tarefas e até ampliam a
empatia. Um exemplo é a pesquisa conduzida pela professora da
Universidade de Kentucky Lisa Zunshine.
Financiada pela Fundação Teagle, Lisa investigou como estudantes
universitários processam a leitura. O estudo usou equipamentos de
ressonância magnética funcional para observar em tempo real a atividade
cerebral. "Esse é o tipo de pesquisa que eu gostaria de ver - é
exatamente o que eu defendo há anos", Gottschall diz. "Precisamos
derrubar esse muro entre as ciências exatas e as humanas para solucionar
essa questões, precisamos que professores de humanas cruzem essa
barreira e aprendam métodos científicos", acrescenta.
Gottschall argumenta que a ficção é poderosa - para o bem ou o mal.
"Temos essa noção de que entramos nos mundos literários e é algo
divertido, mas saímos deles da mesma maneira que entramos. Estamos
exagerando nossa imunidade para a ficção, porque ela realmente muda as
pessoas. Mas não devemos nos convencer de que a literatura é totalmente
boa - ela é uma ferramenta que as pessoas podem usar para propagar
qualquer tipo de ideia que queiram, pois quando você lê uma obra de
ficção abandona o ceticismo e se torna mais maleável à mensagem da
narrativa."
A literatura funciona desde o início como um
simulador. Por meio dela, o leitor pode enfrentar problemas sem riscos e
conhecer outras realidades
Gottschall admite que seus estudos sobre o poder da narrativa podem
parecer uma grande invenção da roda, porque é evidente que as histórias
sempre mudaram o mundo, do abolicionismo inspirado por "A Cabana do Pai
Tomás", de Harriet Beecher Stowe, ao belicismo revanchista de "Minha
Luta", de Adolf Hitler. Mas, com base em suas pesquisas, ele sustenta
que "se você quer que uma mensagem realmente se enterre no cérebro
humano, não mostre uma tabela ou uma apresentação de Powerpoint, mas
conte uma história, porque é nesse momento que estamos vulneráveis".
Numa entrevista ao Valor no Riverside Park, próximo à
Universidade Columbia, Lisa Zunshine diz acreditar que seu trabalho
está sendo cada vez mais aceito e cita como exemplo a petição que ela e
cinco colegas apresentaram há alguns anos à Modern Language Association,
a principal associação americana de professores de literatura,
sugerindo a criação de um novo grupo voltado à abordagem cognitiva. O
pedido foi aceito e a discussão começou com 250 membros.
Atualmente, o grupo conta com mais de 2 mil integrantes e também
consegue emplacar todo ano uma mesa de debates na altamente competitiva
reunião anual da MLA. Lisa, que foi agraciada com uma bolsa da Fundação
Guggenheim de 2007 a 2009 para passar um semestre como professora
visitante no departamento de psicologia da Universidade de Yale, também
diz que várias editoras têm demonstrado interesse em publicar livros
sobre abordagens cognitivas dos estudos literários, sua especialidade, e
que o campo ganha cada vez mais vertentes, como a narratologia
cognitiva e a neuroestética.
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Lisa acredita que o estudo cognitivo da literatura pode ser útil para
o mundo dos negócios. Isso porque, segundo ela, os psicólogos
cognitivos buscam compreender a maneira como as pessoas interpretam
diferentes estados da mente, seja por meio da observação ou por outros
indícios. Para entender qualquer obra de ficção, por exemplo, é preciso
compreender o estado mental dos personagens, num jogo complexo em que
buscamos adivinhar o que outras pessoas acham que os outros estão
pensando e assim por diante, até o quinto nível desse relacionamento,
quando a compreensão se torna impossível. "Se você quiser tornar um
modelo empresarial mais convincente, pode incorporar o conhecimento
sobre esses diferentes estados mentais na sua explicação", afirma.
Na literatura, conta Lisa, o processo é o mesmo, pois "quando falamos
de emoções ou pensamentos, essa narrativa se torna mais interessante do
que se fosse contada com uma simples descrição."
Keith Gandal, professor de literatura da Universidade da Cidade de
Nova York, integra a facção de pesquisadores que questiona o uso de
teorias científicas para explicar acontecimentos na literatura ou na
história. "Minha crítica ao evolucionismo na literatura não é que ele
usa a ciência, mas que ele o faz de maneira anticientífica ou contra o
método científico. Ele trabalha pela dedução e não pela indução. Assim, o
evolucionismo na literatura me parece tão 'leviano' quanto os estudos
literários que quer substituir", comenta o professor.
Gandal alerta para um possível perigo do uso do evolucionismo na
interpretação de obras de ficção: o de uma teoria ser usada para
explicar tudo. Ele cita um exemplo do pensamento do filósofo francês
Michel Foucault, seu mentor na Universidade de Berkeley, para suscitar o
que considera ser o problema.
Num ensaio chamado "Two Lectures", na coletânea "Power/Knowledge"
(Vintage, 288 págs., US$ 10,44), Foucault questiona o uso do marxismo e
da teoria da dominação da classe burguesa como ferramenta para explicar
todos as questões, inclusive a repressão da sexualidade infantil. "Essas
deduções sempre são possíveis. Elas são simultaneamente corretas e
falsas. Acima de tudo, elas são superficiais demais, porque sempre é
possível fazer o oposto e mostrar precisamente pelo apelo do princípio
da dominância da classe burguesa que as formas de controle da
sexualidade infantil jamais poderiam ser previstas", escreveu o filósofo
francês.
Para Gandal, o mesmo problema se apresenta na aplicação da teoria
evolucionista à literatura ou à história. O darwinismo sempre pode
explicar o surgimento e as características do modernismo americano ou da
mobilização americana para a Primeira Guerra, um dos temas pesquisados
por Gandal, mas também pode provar exatamente o oposto, de que a teoria
evolucionista poderia ter previsto um tipo diferente de mobilização para
a guerra e um tipo diferente de literatura. "Aplicar uma teoria ou usar
a dedução não me parece esclarecedor ou interessante. É 'bobo'
precisamente porque pode ser feito sem pesquisas históricas e sem
rigor", observa.
O professor defende a ideia de que um dos principais objetivos dos
estudos literários é descobrir coisas que ainda não sabemos para tentar
responder a perguntas reais. E a única maneira de fazer isso seria pela
indução, começando com um questionamento real cuja resposta ainda não é
conhecida. Assim, o pesquisador estabelece o que considera as regras do
jogo para os estudos literários: "Por que essas obras-primas do
modernismo americano surgiram nesse período? Por que têm similaridades
na trama e nos personagens? Por que compartilham algumas características
estilísticas parecidas? E a partir daí tentar responder a essas
perguntas por meio da pesquisa histórica, tentando recriar o contexto da
história para reconstruir a imprevisível confluência de acontecimentos e
forças históricas que moldaram um conjunto de obras".
Gottschall diz que, apesar de ainda haver estudiosos que rejeitem
suas teorias, há interesse crescente do público por novas abordagens dos
estudos literários. A forte reação dos acadêmicos de literatura "é a
história mais antiga do mundo", reflete. "Hoje em dia, elas [as
críticas] são mais no sentido de que eu quero voltar no tempo e apagar
todo esse progresso que fizemos. Dizem até que eu odeio a literatura -
pois, para eles, se você leva a biologia para a literatura, quer
destruir a literatura, você só quer triturá-la em sua máquina
científica. É basicamente uma ideia supersticiosa de que se você
consegue explicar algo acaba com a mágica que faz aquilo funcionar."
Por outro lado, Gottschall conta que recebeu um apoio muito forte dos
estudiosos da ciência e da psicologia, "pessoas que têm uma mente mais
empírica, que se decepcionaram com o pós-modernismo meio louco das
humanidades".
Valor Econômico|Patrick Brock | De Nova York
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