Código Florestal no necrotério
Preste muita atenção no que a seguir está destacado entre aspas: a
Medida Provisória 571 contribui para que a sancionada Lei nº 12.651
perdoe violações de áreas de preservação permanente realizadas em
"imóveis rurais" por atividades "agrossilvipastoris" implantadas até "22
de julho de 2008".
Mesmo antes de discutir as implicações desses três destaques, é
preciso que se esteja alerta para um fato ainda ocultado por tanta
ingênua referência a um imaginário "novo código florestal".
Sejam quais forem as alterações que a Lei 12.651 sofra no Congresso
por força do verdadeiro tsunami de emendas aos 78 artigos da MP 571, ela
jamais poderá ser chamada de "código", pois dispõe exclusivamente sobre
a proteção de vegetação nativa que ainda exista ou se recomponha em
parte do território nacional cuja dimensão permanece ignorada: a que foi
legitimamente apropriada pela iniciativa privada.
A área total dos empreendimentos do setor
agrícola pouco tem a ver com a dos imóveis rurais
Para que pudesse ser chamada de código, a nova lei também deveria
dispor sobre as florestas que estão protegidas por unidades de
conservação e por populações indígenas, assim como as que permanecem
inteiramente desprotegidas por cobrirem terras que pertencem ao
patrimônio público dos três entes federativos, mas que foram objeto de
grilagem, prevaricação, ou diversas formas de abandono igualmente
escandalosas.
É óbvio que tal alerta já serve de introdução à pergunta
obrigatoriamente suscitada pelo primeiro destaque: a categoria "imóvel
rural". Será possível ignorar que a área total dos empreendimentos
produtivos do chamado setor agrícola - fazendas, sítios e chácaras -
pouco tem a ver com a área total dos imóveis rurais? Pelas estatísticas
oficiais disponíveis, a área ocupada pelos estabelecimentos agrícolas
não chega a 40% dos 850 milhões de hectares do território nacional,
enquanto a área dos imóveis rurais estaria próxima dos 70%.
Ao optar pela categoria "imóvel rural" em vez de "estabelecimento
agrícola", a Lei e a MP favorecem os proprietários privados de terras de
vocação exclusivamente especulativa, que nem sequer podem ser
recenseadas pelo IBGE por não abrigarem comprovada atividade produtiva.
Essas terras, que poderiam atingir 30% do território nacional, estão
evidentemente concentradas nos dois biomas de mais recente e predatória
ocupação: cerrados e florestas amazônicas.
Com o intuito de premiar esse mesmo tipo de especulação fundiária, a
lei considerou "consolidadas" todas as invasões de áreas de preservação
permanente por atividades "agrossilvipastoris". Expediente infelizmente
confirmado pela MP. Ora, a preferência por esse amálgama, em vez da
fundamental distinção entre os impactos ambientais de culturas
permanentes, de cultivos temporários e de pastagens, equiparam os
cuidados dos produtores agrícolas à irresponsabilidade dos que cobrem de
capim margens de rios, encostas e topos de morro. Fazem como se os
simulacros de pastagens dominantes no Centro-Oeste, no oeste baiano e no
sul da pré-Amazônia pudessem ter impactos idênticos aos dos parreirais e
pomares do Sul, cafezais do Sudeste, ou cacauais da Bahia.
O terceiro, mas não menos importante retrocesso dessa revogação do
Código Florestal se refere à data demarcatória entre novas normas e o
passivo ambiental. Foram ignorados os dez anos transcorridos entre a
promulgação da Lei de Crimes Ambientais e o decreto de Lula que
pretendeu colocá-la em prática. É o que fazem a Lei e a MP ao usarem a
vingativa e humilhante data de 22 de julho de 2008 como prazo limite da
legalização dos malfeitos predatórios cometidos contra as áreas de
preservação permanente.
Seria absolutamente justo perdoar desmatamentos ilegais realizados no
período em que o próprio governo federal não apenas os promovia, mas
até punia os migrantes que demorassem a fazê-los. Todavia, essa
distorção, que já deveria ter acabado com a Constituição Cidadã, deixou
de ter qualquer justificativa atenuante desde 1999, com a regulamentação
da Lei de Crimes Ambientais. Não há como deixar de perguntar, então,
quem serão os principais beneficiários desse indulto a prejuízos
intencionais ao bem comum perpetrados nos dez anos anteriores a 22 de
Julho de 2008. E ao se tentar responder, pela terceira vez se chega ao
mesmo agente: a especulação imobiliária dos ocupantes predatórios dos
cerrados.
O cadáver do "Novo Código Florestal de 1965" não poderá deixar o
necrotério até que deputados e senadores decidam o que sobrará da inepta
MP 571. E não é certo que logo depois dessa decisão o cadáver possa ser
tranquilamente sepultado. Conforme a ampla representação da comunidade
jurídica que se reuniu na manhã do domingo 17 no Tribunal de Justiça do
Rio, surgirá um supermercado de ações judiciais se a Lei nº 12.651 não
for rapidamente declarada inconstitucional.
José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do
Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de
Pesquisas Ecológicas (IPÊ), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br
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