Em 2013, com O Capital no Século
XXI, Thomas Piketty alertou para o crescimento contínuo da desigualdade de
riqueza desde a década de 1970, contrária à tendência dos 60 anos anteriores e
muito mais acentuada e socialmente relevante que a desigualdade de renda, mais
fácil de pesquisar e na qual se concentrava a maioria dos estudos anteriores.
Na Europa, a parcela detida pelo
décimo superior subiu de 60% em 1970 para 64% em 2010 e a do centésimo superior
de 21% para 24%. Nos EUA, o décimo superior subiu de 64% para 72% e o centésimo
superior de 28% para 34%. Na falta de políticas ativas contra a desigualdade
(como, por exemplo, impostos progressivos sobre o capital), esses países
retornarão em meados do século XXI a um patamar de desigualdade semelhante àquele
do fim do século XIX e início do XX.
Nesse período, o 1% mais rico
(“classes dominantes”, na terminologia de Piketty) detinha metade de toda a
riqueza, o décimo superior (“classes superiores”, sendo os não incluídos no
primeiro 1% referidos como “classes abastadas”) , quase 90%, enquanto o 50%
mais pobre (“classes populares” na terminologia do economista) ficava com meros
5%. A nostalgia chama esses tempos e de belle époque, mas poucos, mesmo nos
países mais ricos, puderam usufruir de sua beleza.
Relatórios
O ano de 2010 foi também aquele
no qual o banco Credit Suisse publicou o seu primeiroGlobal Wealth Report
(Relatório da Riqueza Global). Naquele ano, os 50% mais pobres dos 4,44 bilhões
de adultos possuíam pouco menos de 2% dos ativos mundiais estimados em 194,5
trilhões de dólares, “embora a riqueza esteja crescendo rapidamente para alguns
membros deste segmento”, acrescentava esperançosamente o relatório. Os 10%
superiores possuíam 83% da riqueza mundial e o centésimo superior, 43%. A
riqueza média equivalia a 43,8 mil dólares líquidos. Era preciso possuir 4 mil
para deixar de pertencer aos 50% mais pobres, 72 mil para chegar aos 10% mais
ricos e 588 mil para o centésimo superior.
Cinco anos depois, o relatório de
2015, publicado em 13 de outubro, mostra que a concentração de renda mundial
alcançou níveis tão críticos quanto o do mundo industrializado antes da
Primeira Guerra Mundial. Apesar do relativo otimismo de 2010, a metade mais
pobre dos 4,8 bilhões de adultos ficou ainda mais depauperada: agora possui
menos de 1% da riqueza planetária estimada em 250,1 trilhões de dólares,
enquanto o décimo mais alto controla quase 90% (87,7%, para ser exato) e o
centésimo no topo, exatos 50%. A riqueza média líquida subiu para 52,4 mil, um
aumento nominal de 19,6% que se reduz a 9,3% se descontados 9,5% de inflação do
dólar nos Estados Unidos em cinco anos, mas os níveis de corte passaram para
3,21 mil (27% mais baixo em termos reais), 68,8 mil (13% mais baixo) e 759,9
mil (18% mais alto), respectivamente.
Expectativas
Percebeu-se há algum tempo, em
vários países, como a limitada recuperação da economia após a crise de 2008
fluiu para os bolsos dos privilegiados, enquanto as classes média e popular
ficaram ainda mais pobres pela estagnação (ou mesmo redução) dos salários
reais, o aumento do desemprego e o maior endividamento. Na Espanha, por
exemplo, o número de milionários em dólares (pelo critério do Capgemini e Royal
Bank of Canada, que ao contrário do Credit Suisse, não inclui residência e bens
de consumo) cresceu de 127,1 mil em 2008 para 178 mil em 2014, enquanto a renda
per capita caiu de 35,6 mil para 30,3 mil, o desemprego subiu de 11% para 26% e
a dívida pública saltou de 39,4% para 99,3% do PIB.
Nos EUA, o 1% mais rico absorveu
95% do crescimento após a crise financeira e o empobrecimento da camada
inferior reflete-se até na mortalidade. Em 1960, os 20% de homens com 50 anos
mais pobres podiam esperar viver até os 76,6 anos, enquanto, em 2010, esse
número caiu para 76,1. No caso das mulheres, a queda foi de 82,3 para 78,3.
Enquanto isso, a expectativa de vida para os 20% mais ricos atingiu 88,8 anos
para homens e 91,9 para mulheres.
Na União Europeia, a renda
combinada dos dez mais ricos, 217 bilhões de euros, superou o valor total das
medidas de estímulo de 2008 a 2010, cerca de 200 bilhões. A novidade do
relatório está em oferecer, em números, um panorama sintético dos resultados
desse processo na escala do planeta.
O efeito do crescimento das
dívidas na riqueza líquida foi tão importante que resultou no paradoxo de que
agora há entre os 10% mais pobres (inclusive os de patrimônio negativo) mais
europeus e norte-americanos do que chineses. Nem todos esses vivem na miséria.
Alguns, principalmente nos EUA, são jovens cujo patrimônio foi zerado por crédito
educativo, hipoteca ou cartão de crédito, mas têm diploma, um padrão de consumo
decente e o sonho de um dia chegar ao topo, mas a precariedade da sua situação
ficará evidente se tiverem de enfrentar uma crise ou uma doença inesperada.
Parte do aumento recente da
desigualdade está relacionada à valorização do dólar perante as outras moedas
do mundo. Quem não vive nos Estados Unidos ou em países de câmbio fixo ficou,
só por isso, mais pobre em dólares. Em muitos países, esse efeito é neutralizado
ou amenizado pela queda do custo de vida local em moeda estadunidense. Mas
quando se refere às relações internacionais de poder e riqueza, esse
empobrecimento é real, como constata qualquer brasileiro ao viajar para o
exterior, pagar por serviços de internet ou, se está no topo da escala, ao
negociar com bancos como o Credit Suisse.
Para usar a terminologia do banco
suíço, o número de adultos na “base da pirâmide” (com menos de 10 mil dólares
líquidos) cresceu de 3,038 bilhões (68%) para 3,386 bilhões (71%), sua
irrisória fatia no bolo da riqueza mundial caiu de 4,2% para 3% e sua riqueza
média, ou melhor, pobreza média, caiu de 2,7 mil para 2,2 mil, um tombo de 26%
em termos reais.
A camada do meio (10 mil a 100
mil dólares) diminuiu de 1,045 bilhão (24%) para 1,003 bilhão (21%), sua
parcela caiu de 16,5% para 12,5% e sua riqueza média passou de 30,7 mil para
31,2 mil, ilusão monetária sobre uma queda real de 7,2%. Em 2000, 3,6% dessa
camada vivia na China, em 2010, pouco menos de um terço e hoje, 36%.
Os não milionários da camada
superior (100 mil a 1 milhão de dólares) perderam em termos relativos. Seu
contingente passou de 334 milhões (7,5%) para 349 milhões (7,4%) e sua
participação na riqueza mundial diminuiu de 43,7% para 39,4%. Em tese, não têm
do que se queixar: em termos absolutos, sua riqueza média passou de 254 mil
para 282 mil dólares, com leve aumento real de 1,3%.
Compare-se, porém, com o que
aconteceu com os milionários: seu número aumentou de 24,2 milhões (0,5%) para
34 milhões (0,7%) e sua riqueza passou de 2,86 milhões para 3,32 milhões, o que
significa um aumento real de 6,1%. Sua fatia, já grande, aumentou de 35,6% para
45,2% e passou a ser a maior de todas. A parte do Leão, por qualquer critério.
O perfil geográfico desse grupo também se concentrou. Cinco anos atrás, 41%
viviam nos EUA, hoje são 46%. Os únicos outros países com ganho perceptível de
participação foram o Reino Unido, que ao passar de 5% para 7% tomou o segundo
lugar por muito tempo ocupado pelo Japão, a China (de 3% para 4%), a Suíça (de
1% para 2%) e a Suécia (idem). Alguns caíram muito, inclusive Japão (de 10%
para 6%), França (de 9% para 5%) e Itália (de 6% para 3%).
Classe média
O relatório não faz uma
estimativa independente do número de bilionários, mas, segundo a revista
Forbes, ele aumentou de 1.011 com uma riqueza total de 3,6 trilhões para 1.826
com um valor agregado de 7,05 trilhões. Em 2010, esse grupo possuía
praticamente o mesmo que a metade mais pobre da humanidade. Cinco anos depois,
açambarca mais que o triplo. Basta juntar num ônibus os 85 mais ricos (com 13,4
bilhões ou mais, incluídos os brasileiros Jorge Paulo Lemann e Joseph Safra),
para usar a imagem do Nobel de Economia Joseph Stiglitz, para igualar a metade
de baixo da pirâmide, 3,7 bilhões de seres humanos (2,4 bilhões das quais
adultos), cujos patrimônios somados igualam os mesmos 2,1 trilhões de dólares.
O relatório de 2015 do Credit
Suisse inclui também pela primeira vez um estudo da “classe média global” com
critérios não diretamente comparáveis ao da pirâmide acima. Esta foi definida
como possuidora de riqueza líquida de 50 mil a 500 mil dólares nos EUA em
meados de 2015 e valores equivalentes em outros países segundo o poder
aquisitivo local do dólar conforme a estimativa adotada pela instituição – por
exemplo, de 13,7 mil a 137 mil dólares na Índia, 28 mil a 280 mil no Brasil ou
na China e 72,9 mil a 729 mil na Suíça, de forma a obliterar o efeito da
variação cambial. Em todo o mundo, 664 milhões se encaixam nessa definição, com
um patrimônio total de 80,7 trilhões (32% do total mundial), média de 121,5 mil
per capita. Acima deles estão 96 milhões, com 150 trilhões (60% do total), 1,56
milhão por proprietário. As duas camadas juntas detêm, portanto, 92% de todos
os bens do mundo.
É só nos países ricos que esse
conceito de “classe média” se aproxima daquilo que Piketty entende pelo termo,
ou seja, aqueles cujas posses estão acima da mediana, mas abaixo dos 10%
superiores. Nos menos desiguais (Austrália, Cingapura, Bélgica, Itália e Japão)
chega a constituir 60% da população ou mais. Mas no contexto mundial soma só
13,9% da população (com outros 2% no topo) e é na realidade mais comparável às
“classes abastadas” de Piketty. Isso é verdade também para quase todos os
países pobres e emergentes. Qualificam-se como “classe média” 3% dos indianos,
4% dos argentinos, 8,1% dos brasileiros, 10,7% dos chineses e 17,1% dos
mexicanos. No Brasil, em especial, essa “classe média” abrange quase toda a
camada conhecida pelos pesquisadores de mercado como A2 (3,6%) e a metade
superior da B1 (9,6%), ou seja, é a maior parte do que chamaríamos de “elites”.
Acima dela, só a classe dominante no sentido estrito, 0,6% dos brasileiros (a
camada A1 conta com 0,5%).
Apesar disso, hoje é a China o
país com o maior número de indivíduos na “classe média”: nada menos de 109
milhões, ante 92 milhões nos EUA. Onze outros países têm mais de 10 milhões:
Japão, com 62 milhões; França, Itália, Alemanha, Índia, Espanha e Reino Unido,
com 20 milhões a 30 milhões; Austrália, Brasil, Canadá e Coreia do Sul, com 10
milhões a 17 milhões.
Que ninguém se engane: essa
“classe média” é uma elite em termos planetários, vive com conforto, tem em
geral uma educação superior e é muito relevante como consumidora, talvez também
como contribuinte. Porém, do ponto de vista do poder econômico e político e do
interesse de grupos financeiros internacionais, são os 29,8 milhões de
milionários, no mínimo, que contam.
Aqueles com 5 milhões a 10 milhões de dólares são 2,5 milhões e com 10
milhões a 50 milhões, 1,3 milhão, mas o foco visível do interesse do Credit
Suisse está nos ultrarricos com mais de 50 milhões, que cresceram de 81 mil em
2010 para 124 mil em 2015 ou 0,0026% dos cidadãos do mundo. Destes, 59 mil
vivem nos EUA (48%), 30 mil na Europa (24%), 9,6 mil (9%) na China e Hong Kong
e 1,5 mil (1%) no Brasil. A Suíça tem 3,8 mil nessa categoria, mais que a
França (3,7 mil).
Esses multimilionários são o
equivalente aproximado, quanto ao seu número relativo, à classe senatorial da
Roma antiga (600 senadores, mais os filhos adultos, em uma população de 60
milhões) ou à alta nobreza titulada nas grandes monarquias europeias do século
XVIII (algumas centenas em populações de dezenas de milhões). Os meros
milionários podem ser equiparados à classe curial da antiga Roma (mercadores,
conselheiros e funcionários municipais) ou à pequena nobreza não titulada da
Europa pré-revolucionária, ambas perto de 1% da população da época.
Conforme Piketty, as grandes
novidades do século XX, atribuídas por ele aos choques políticos e econômicos
das duas guerras mundiais, foram a redução da participação da classe dominante
na riqueza, para cerca de 20% do total em vez dos 50% tradicionais até 1913, e
o surgimento de uma verdadeira classe
média, formada por algo como 40% da população e 35% ou 40% da riqueza. Sua
parcela é constituída fundamentalmente de residência e bens de consumo e
poupanças, representando pouco poder econômico, mas uma razoável segurança. Nas
sociedades mais antigas, os 90% inferiores formavam uma massa pouco
diferenciada e possuíam 10% ou menos da riqueza social.
O relatório do Credit Suisse
mostra uma sociedade global cada vez mais próxima desses padrões antigos e
medievais, e mais distantes daqueles atingidos pelos países mais desenvolvidos
nos anos do pós-Guerra. Desde o início da era neoliberal, a riqueza acumula-se
cada vez mais no topo, enquanto as maiorias empobrecem em termos relativos e
até absolutos. As crises mostraram-se, sobretudo, oportunidades de radicalizar
esse processo: para conter as falências em massa que agravariam a crise,
valores imensos são mobilizados pelos Estados para financiar os poderosos, cuja
incompetência é premiada também com cortes de impostos, salários e direitos
trabalhistas, enquanto as massas pagam a conta com um salário congelado ou
reduzido e impostos mais altos, quando não perdem o emprego e se endividam
ainda mais.
O crescimento de alguns países
emergentes, principalmente a China, foi o único fator importante a contrariar
essa tendência geral, ao incorporar camadas maiores da população à “classe
média” mundial (apesar de, no caso chinês, isso também aumentar sua
desigualdade interna em relação às massas camponesas). Mas esse fator está em
desaceleração, ao passo que as pressões para privilegiar ainda mais os ricos e
lhes dar maior liberdade de ação estão em alta em quase toda parte e as crises
em formação só tendem a reforçá-las.
*Reportagem publicada
originalmente na edição 873 de Carta Capital, com o título "No mundo de 'Os
miseráveis'".
Nenhum comentário:
Postar um comentário