terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

De repente, o X deixou de ser sinal de multiplicar

Eike, um dia o maior bilionário do Brasil e um dos dez maiores 
do mundo: nunca um empresário na América Latina caiu de 
tão alto em tão pouco tempo. 
Com a conclusão,no fim de semana, da venda do hotel Glória para a empresa suíça Acron, desfaz-se mais um elo da rede de negócios montada por Eike Batista, que começou a perder chão no ano passado, quando o grupo mergulhou em profunda crise de confiança. Hoje, a OGX, empresa principal do conglomerado  (com o nome trocado para OGP, sem o X que selava todos os empreendimentos de Eike), encontra-se em recuperação judicial, negociada em acordo com os credores.

Em “Ascensão e Queda do Império X”, Sergio Leo cativa o leitor com um texto fluente, em que expõe com sobriedade e elegância de estilo a tragédia — é disso que se trata — da carreira do empresário.  Ainda um desconhecido na década de 1980, após iniciativas de sucesso  na exploração de minas de ouro, Eike foi convidado a se associar a uma mineradora de porte modesto, no Canadá, a Treasure Valley Explorations Ltd., que ele dirigiu e renomeou em 1986 como TVX Mining Corp. e, depois, TVX Gold Inc. TVX era o símbolo da Treasure Valley na bolsa canadense. O famigerado X vem daí, então entendido por Eike como sinal  de bom augúrio. “Quem se depara com a letra a associa mentalmente a uma operação matemática, a algo que se torna muitas vezes maior”, ele diz num livro-depoimento publicado em 2011: “O X da Questão – A Trajetória do Maior Empreendedor do Brasil”. Nem mais, nem menos, bem no gênero superlativo de falar e mostrar-se com que Eike se notabilizou. Em vários trechos do livro de Sergio Leo, o empresário aparece na plenitude das extravagâncias que o tornaram uma celebridade.

“Nunca um empresário na América Latina caiu de tão alto em tão pouco tempo”, escreve Sergio Leo, colunista do Valor. Em outubro de 2010, o valor das cinco empresas do grupo X negociadas na bolsa de valores ultrapassaria R$ 95 bilhões. Desse total, mais de R$ 72 bilhões eram ações da OGX, a empresa de petróleo criada por Eike três anos antes, com capital de grandes investidores privados. O empresário era classificado como o maior bilionário do Brasil e um dos dez maiores do mundo. Passados três anos, em dezembro de 2013, o que havia para noticiar — e, talvez, para Eike comemorar, na ressaca dos meses tormentosos passados desde os primeiros sinais de que seu castelo de areia começava a ruir  — era o acordo com os credores da OGX para impedir que uma possível recuperação judicial da empresa terminasse em declaração de falência.

Fechado na noite de 24 de dezembro, o acordo entre mais de uma centena de executivos e advogados da OGX, da OSX e credores da petroleira “deu de presente” ao ex-bilionário a troca de US$ 5,8 bilhões em dívidas por participação acionária no empreendimento. Eike ainda ficou com 9,4% da companhia e a garantia de que não lhe cobrarão o US$ 1 bilhão que se comprometera a  investir para salvar a empresa. “Quem recebeu a negociação como um presente de 1.o de abril foram os minoritários, ao ver sua participação de 50% da OGX se transformar em 5% do total das ações. Esses pequenos acionistas passaram a mudança de ano ameaçando levar também os credores à Justiça, por perdoarem, sem autorização, o compromisso de Eike para com a OGX”, relata Sergio Leo. 

O acordo, por seus próprios termos, traz uma certa marca de esperança na recuperação da empresa (no princípio de dezembro, a plataforma FPSO OSX-3 de extração de petróleo entrou em operação no campo de Tubarão Martelo). Mas  o X da figuração extrassensorial que Eike, frequentador de mesas de videntes, considerava sinal de multiplicação, de bom augúrio, não interessou aos que o tiraram do buraco: a empresa-mãe chama-se agora OLP – Óleo e Gás Participações.

Há uma razão, entre outras que se possam identificar ou vislumbrar, para explicar a facilidade com que Eike trouxe para seu convívio tanta gente, entre financiadores, investidores e fornecedores, seduzida pelas oportunidades de negócios que oferecia e por sua indiscutível competência de estrategista do próprio marketing: a conjunção dos mitos do vencedor que se fez sozinho, o “self-made man do folclore americano, e do “visionário”, ambos com potencial conhecido para causar impressão. O livro de Sergio Leo passa várias vezes por aí.

Cultiva-se a crença de que sempre será possível alguém fazer fortuna pelo próprio esforço, vindo do nada, solitário na sua determinação e dedicação ao trabalho. Talvez seja possível acumular algum capital, cavado com as próprias mãos, para fundar o negócio de um sonho antigo. Daí para a frente, porém, se as aspirações forem mais ambiciosas, a história a contar será diferente: alguma ajuda terá que vir de fora e, não raro, na forma de um privilégio obtido por variadas formas de interlocução política, esta sim, a verdadeira chave para o sucesso. É comum que a esse primeiro momento se acrescentem outros, fortificadores das primeiras posições de relevo alcançadas no mundo dos negócios. Não terá sido isso, porém, que Eike disse ao “imigrante nordestino” que, conforme seu relato a uma jornalista, o abordou, enquanto fazia seu “jogging”, e lhe perguntou se sabia da importância de seu exemplo para quem sonha subir na vida. “Ele me abraçou e começou a chorar. Chorei junto. Nunca imaginei algo assim”, disse Eike à sua entrevistadora. A frase admite mais de uma leitura.

Também é bastante difundida a ideia de que existiria uma categoria de iluminados, chamados “visionários”, capazes de ver oportunidades de bons negócios onde ninguém mais vê. Prefere-se ignorar o sentido ruim da palavra, de utopista, devaneador, que se entrega a projetos de realização impossível. O “visionário” tem apenas dons elogiáveis. Frequentemente, aqueles assim considerados já ultrapassaram a fase inicial do empreendedor de horizontes ainda acanhados, e circulam por órbitas de distinção que os habilitam a tratamento, inter pares e/ou intragovernamental, de nível superior. Assim foi com Eike.

Juntados os dois mitos, constroem-se os chamados grupos de interesses, redes de negócios em que a gestão de risco assume características de aventura desfrutada apenas por espíritos realmente fortes. Não é impossível  que incautos, pessoas de boa-fé, se deixem atrair, embora como figurantes, para a mesa de apostas, seja como investidores, seja como apoiadores, digamos, institucionais (como aconteceu no caso de Eike) – para depois se arrependerem da colaboração impensada, ao saberem do real alcance dos horizontes do “visionário”.

Qual terá sido o “momento” explicador do salto de Eike Batista para o seleto mundo dos bilionários? Pelo que se lê no livro de Sérgio Leo, podem ter sido vários, alguns explicitados, outros, embutidos nas entrelinhas, mas todos daquele tipo cumulativo de que se beneficiam os “visionários” de primeiro nível. Uma coisa parece certa: o apoio paterno sempre foi importante. É praticamente impossível dizer Batista e não se dar a imediata associação com Eliezer, pai de Eike, que se notabilizou como desbravador de horizontes para a indústria mineral brasileira, principalmente à frente da então Companhia Vale do Rio Doce, atividade em que desenvolveu grande influência em vários governos  e nos meios empresariais.

“O sucesso de Eike no ramo da mineração o levou a ser acusado de receber do pai uma ‘mapa das minas’, com detalhes das ocorrências de minério no país, que supostamente teria sido obtido por Eliezer em suas passagens pelo governo”, lê-se no livro. “A acusação nunca foi provada. Os êxitos do empresário no campo mineral [origem primeira de sua fortuna] não são explicáveis especialmente por ‘achados’ fenomenais, e especialistas da área questionam a versão. O “mapa” que Eliezer proporcionou ao filho, e que muito o ajudou e seu grupo de empresas X, foi outro.” Sergio Leo menciona uma espécie de “mapa estratégico”, tão ou mais valioso, quem sabe, que indicações sobre reservas minerais, como reza a lenda. “O ex-presidente da então Vale do Rio Doce garantiu ao herdeiro, em momentos decisivos da constituição do Império X, uma rede de conexões importantes com figuras de peso do capitalismo brasileiro e da exploração de recursos minerais do país.”

Pode-se dizer que Eike foi um “excêntrico (assim, no tempo passado, já que esse está falando da ruína de seu edifício de projetos frustrados), no sentido mais comum do termo, que Sergio Leo usa. Mostrou-se, é verdade, uma pessoa de comportamento estranho, incomum. Alguém, no Brasil pelo menos, já teve uma Mercedes McLaren estacionada dentro de casa, como objeto decorativo? Eike, sim. Ele também exigia que os valores de seus contratos terminassem em 3, por acreditar que daí viriam bons fluidos, pelo fato de o algarismo coincidir com o dia de seu aniversário. E adotou o número 63, da lancha com que venceu uma competição, como dezena de sorte e a incluía entre os centavos de todas as transações financeiras importantes que fazia e nos lances oferecidos para compra de blocos de exploração de petróleo. São exemplos de suas esquisitices. Sergio Leo conta outras.

Contudo, no sentido etimológico mais estrito, Eike não foi um excêntrico, e isso também se vê no livro. Porque  “no centro” ele sempre esteve, considerando-se as atenções que mereceu de apostadores do mercado financeiro, especialmente os da área de renda variável, de políticos influentes, de governantes (incluída a presidente da República). E teria que estar “no centro”, claro, para merecer as atenções dos responsáveis, digamos, no BNDES, pelo amparo a projetos de grupos empresariais brasileiros supostamente destinados  a brilhar como estrelas globais de primeira grandeza.

A inclusão de investidores estrangeiros na apresentação de seus projetos, apenas interessados ou efetivamente conquistados – sua capacidade de convencimento não conhecia fronteiras – ajudava, e muito, na conquista de simpatias e estabelecimento de parcerias. Também aquelas em que entraram fornecedores, que viam no detalhe mais um dado positivo no cadastro de Eike. Não podiam imaginar que iriam amargar a decepção de não merecerem, da parte de executivos  de suas empresas, qualquer resposta a emails em que pediam explicação para pagamentos não honrados. Eram os tempos de esquiva a compromissos de milhões e milhões de reais, que antecediam a quebra exposta do grupo, com a declaração, aí sim aberta, de insolvência. Esfumava-se a figura do “visionário” vencedor.

O livro de Sergio Leo é uma boa tentativa para se compreender o fenômeno Eike Batista – ele mesmo e sua indiscutível capacidade de autopromover-se, “e as jogadas, as trapaças e os bastidores da fortuna de mais de US$ 34 bilhões que virou pó”. É um texto de conteúdo, que se contrapõe ao quadro esquemático de superficialidades de interpretação em que olhares apressados elevavam as iniciativas de Eike a alturas superiores  de competência. E, assim, ele foi também coroado, em pesquisas entre executivos brasileiros, como o líder empresarial mais admirado, à frente, por exemplo, de nomes tradicionais do mundo dos negócios, como Antônio Ermírio de Moraes e Jorge Gerdau.

Eike era moderno, ousado, selava seus projetos com as mais recentes expressões do “estado da arte”. Impressionava. Mas Eike não foi uma estrela solitária, “não foi o único a aproveitar o mercado de capitais para financiar seus delírios com a confiança alheia”, ostentando números que constituíam elementos de sedução generalizada.

Eike “também não foi o único a fazer sucesso na bolsa com empresas pré-operacionais, sem fonte de receita e movidas a expectativas de produção futura. Mais ainda, as companhias do Império X, além da ajuda oficial e da espantosa incompetência dos órgãos de fiscalização, beneficiaram-se de um fenômeno pouco divulgado, o da mistura de interesses no setor financeiro, em que bancos remunerados de acordo com a valorização das ações de uma empresa são os mesmos que avaliam e recomendam a compra dessas ações”.

“A queda fragorosa do Império X não foi resultado da queda em desgraça de um eleito pelos poderosos, como já se viu na história do capitalismo brasileiro. Ela é um sintoma da fragilidade do sistema financeiro nacional, que deveria propiciar aos empreendedores fontes de financiamento ao abrigo dos humores do Estado, mas segue, em menor escala, sujeito a desvios como o que elevou o Sr. X ao topo de um gigantesco castelo de cartas.”

“A ambição e a megalomania de Eike apenas criaram uma vitrine de luxo para os riscos a que estão sujeitos os investidores dispostos a acreditar em lendas empresariais sem dar a devida atenção à história e ao comportamento de seus heróis.” Tudo foi acontecendo como se nunca tivesse existido o Eike de um colar inteiro de fracassos, como o da eBX, a empresa de entregas expressas com que pretendeu concorrer com os Correios, ou a montagem de um jipe, o JPX, uma completa anomalia tecnológica-mecânica (de que o Exército comprou algumas centenas), ou, como diz Sergio Leo, “o delírio anedótico” de fabricação de um “tuk tuk”, como aqueles que infestam as ruas da Índia, para entregar encomendas da eBX. “O tuk tuk nacional, que seria,após o frustrado JPX, mais um ensaio de “sinergia” entre empresas X, não foi além da prancheta dos engenheiros. Durou bem menos que tentativas futuras, também fracassadas, de ligar entre si operações das empresas do grupo – o grande equívoco que ajudou a transformar o mergulho empresarial de Eike em colossal naufrágio.”

O livro de Sergio Leo também sugere, por associação temática e de circunstâncias que explicam a escalada do Império X, a leitura de “The Watchdog  that Didn’t Bark – The Financial Crisis and the Disappearence of Investigative Journalism” (O cão de guarda que não latiu – A crise financeira e o desaparecimento do jornalismo investigativo),  de Dean Starkman, agora publicado nos Estados Unidos (Columbia University Press, 2014). O livro de Starkman, editor da “Columbia Journalism Review”, é um libelo contra a imprensa americana, que, habituada à valorização do acesso privilegiado a informações, mesmo que sobre fatos mal verificados ou de importância discutível, tornou-se cúmplice dos que, no mercado financeiro, operavam  o sistema que produziria a crise de 2007/2008.

“No auge da trajetória de Eike e sua corporação X”, diz Sergio Leo em seu livro, “o ambiente global era favorável aos ousados, especialmente nos chamados mercados emergentes. Gestores de fundos bilionários no exterior eram pressionados pelos investidores a aumentar a rentabilidade de suas aplicações, em um mundo no qual os juros dos países desenvolvidos eram negativos, abaixo da inflação, e começavam a escassear opções de onde arrancar bons rendimentos”. No Brasil, “a economia se destacava entre os países em desenvolvimento, parecia atravessar sem danos aparentes a crise desencadeada pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos e chegaria ao ano de 2010 com um estonteante crescimento anual de 7,5%,o maior desde 1986”.

Se a bolha de Eike cresceu ao ponto que chegou, não há dúvida de que, além dos olhos semi-cerrados de órgãos reguladores e financiadores, também aqui faltou vontade jornalística de se compreender que havia um desastre em formação, como, judiciosamente, conclui Sergio Leo, por outras palavras.

No fim do século XIX, Mark Twain escreveu um ensaio, “On the Decay of the Art of Lying” (Sobre a decadência da arte de mentir), em que, com o sarcasmo que lhe era peculiar, perguntava: “Que chance terá o mentiroso ignorante, não cultivado, contra um especialista educado?” Dizia então que, se mentir é um hábito universal, porque “todos mentimos”, então, tratemos de treinar diligentemente para “mentir judiciosamente, com bons propósitos, para benefício dos outros, não para o próprio”. Devemos mentir “caridosamente, humanitariamente, não cruelmente, nem maliciosamente”. Devemos mentir “com graça, com firmeza, com a cabeça erguida”. Substitua-se “mentir” por “iludir”. Parece ter sido o caso de Eike Batista, a julgar por seu discurso sempre ilustrado por referências, claras ou implícitas, ao que seria a contribuição de suas iniciativas para o desenvolvimento nacional. Era como se ele trabalhasse pelo interesse público.


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