Mudança e permanência
Por Tárik de Souza | Para o Valor, do Rio
"Nossos ídolos ainda são os mesmos/ e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles/ não apareceu mais ninguém"
("Como Nossos Pais", Belchior, 1976)
Meio século depois, boa parte dos ícones forjados nos anos 1960
continua comandando a massa. A começar pelo Rei Roberto Carlos, de 70
anos, entronizado pela Jovem Guarda, a partir de 1965. Mesmo há anos sem
inéditas ou sucessos nas paradas, em fase "Las Vegas al Mare", os
súditos não o abandonam. A banda Del Rey, liderada pelo vocalista
pernambucano China (ex-Sheik Tosado) e o bloco carnavalesco carioca
Exalta Rei propagam exclusivamente suas músicas. Bastou um breve flerte
com a sertaneja Paula Fernandes, de belas pernas à mostra, em seu
especial de fim de ano de 2010, e a moça se tornou campeã de vendas do
combalido mercado de discos nacional: 1,3 milhão de cópias no ano
passado, superada apenas pelo eclesiástico "Ágape Musical", do padre
Marcelo Rossi.
Seu parceiro Erasmo Carlos, também de 70, se bandeou para a esfera
"cult", disparando discos elogiados, como "Rock'n'Roll" (2009), 15 mil
discos consumidos, e "Sexo" (2011), 10 mil, em parcerias com Adriana
Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Nando Reis, Liminha, Nelson Motta. Essas
vendas ainda serão turbinadas, no Dia das Mães, com a edição do DVD
"Erasmo Carlos ao vivo no Teatro Municipal - 50 Anos de Estrada". O
iê-iê-iê, quem diria, invadiu o templo da música erudita.
Esses lançamentos todos saem pela gravadora Coqueiro Verde, da qual
Erasmo é sócio, ao lado do filho, Léo Esteves. Não é um selo de pequeno
porte. Lança 10 títulos por mês - a empresa tem 300 em catálogo, boa
parte em DVDs - e arrebanha artistas novos do porte de Karina Buhr,
Silvia Machete, MV Bill, Kassin, Domenico, Moreno Veloso, Autoramas,
Mundo Livre S/A e os recauchutados Mutantes.
Por falar neles, sua mais completa tradução, Rita Lee, de 64, se
despediu dos palcos, em janeiro, honrando a tradição de ovelha negra.
Xingou a polícia do Festival de Verão de Barra dos Coqueiros (SE), que
reprimia o consumo de drogas em seu show, e acabou presa. Como em velhos
tempos, foi autuada por "desacato, apologia ao crime ou ao criminoso",
enquadrada no artigo 287 do Código Penal. Mas seu novo CD, "Reza", já
está em pré-venda no iTunes e entra nas lojas na segunda-feira.
A onipresença sessentista não trata apenas dos ídolos vivos. Também Elis Regina reencarna na pele e vocal da filha, Maria Rita
Alternando as carreiras de escritor ("Estorvo", "Budapeste", "Leite
Derramado") e compositor, Chico Buarque, de 67, de repertório celebrado
por um bloco feminino carioca, Mulheres de Chico, surpreende em mais um
retorno. O último disco, "Chico", lançado no ano passado, destila
audácias estilísticas em assimétricos sambas, baião e até um blues
confessional ("meu tempo é curto/ o dela sobra/ meu cabelo é cinza/ o
dela é cor de abóbora") e já vendeu expressivas 80 mil cópias. A
excursão de lançamento vai contabilizar 81 shows para um público
estimado em 150 mil pessoas.
De volta à atitude iconoclasta da era tropicalista, após vários
discos de "standards", Gal Costa, de 66, também reaparece renovada num
álbum nada ortodoxo, "Recanto", com inéditas expressamente
confeccionadas pelo fiel fornecedor Caetano Veloso, de 69. Trata-se de
uma espécie de transposição para o suporte eletrônico das óperas de
ruídos de seus discos da transição dos anos 1960 para os 70 ("Gal
Costa", 1969, "Legal", 1970). A nova casa de shows carioca Miranda lotou
no início da turnê, duas semanas atrás, e o disco já foi adquirido por
25 mil pessoas.
É um público que vem acompanhando a mutação roqueira de Caetano em
manifestos farpados como "Cê" (2006), de 35 mil adeptos, e "Zii e Zie"
(2009), que fez circular 15 mil cópias. Isso sem contar os respectivos
desdobramentos, de "Cê ao vivo" (2007), mais 10 mil, e "MTV ao vivo", em
CD (6 mil) e DVD (11 mil) do segundo.
Seu parceiro antípoda Gilberto Gil, que, como ele, completa 70 anos
neste ano, tem uma agenda polpuda para o lançamento do próximo título,
"Ensaio Geral - Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo", previsto para
edições em CD, DVD e Blu-ray, em outubro. Em 28 de maio, estreia no
Municipal carioca acompanhado por 40 músicos da Orquestra Petrobras
Sinfônica, que, na contramão da iconoclastia de Caetano e Gal, dará
roupagem erudita a clássicas de seu repertório e algumas alheias. Entre
junho e agosto, encara a Europa e em setembro, América do Sul. Mas o
anterior, "Fé na Festa" (2010), ainda tem solicitações para shows no
México e nos Estados Unidos, num giro em outubro e novembro.
A quarta mosqueteira do coletivo Doces Bárbaros, a sempre alada Maria
Bethânia, de 65, responde com poesia própria ("eu não provo do teu fel/
não piso no teu chão/ e pra onde você for/ não leva meu nome, não") à
artilharia que recebeu por causa de subsídios fiscais para um blog em
que declamava poemas. O que ela escreveu se entrelaça com um tema de
Paulo César Pinheiro ("Carta de Amor"), incluído no recém-lançado disco
"Oásis de Bethânia", de faixas climáticas e intimistas, cuja tiragem
inicial é de 30 mil cópias.
Menos badalado que a Tropicália, o movimento mineiro do Clube da
Esquina, liderado pelo carioca Milton Nascimento, de 69, ainda se debate
com atrasos burocráticos para as comemorações dos 40 anos de seu disco
homônimo, de 1972, a inauguração de um museu em Belo Horizonte e a
filmagem de um documentário. Mas com participação especial de Lô Borges,
parceiro do disco do Clube, ele realiza uma turnê por oito cidades
celebrando 50 anos de carreira, 70 de idade e 45 do disco de estreia,
com direito a registro em DVD na apresentação do Rio, em 6 de outubro.
No paroxismo do enfrentamento do tempo, outro pilar sessentista,
Jorge Benjor, que estreou no berço da bossa nova, o Beco das Garrafas,
em 1963, com seu manifesto "Samba Esquema Novo", desmente a data de
nascimento dos dicionários (22/3/1942) e "adia" por três anos (alega ter
nascido em 1945) a entrada oficial nos 70 anos. Incensado pela banda
paralela Los Sebozos Postiços, formada por integrantes do Nação Zumbi e
do Mundo Livre S/A, com sua rara valsa "Descalços no Parque", regravada
no disco mais recente de Marisa Monte, e o obscuro samba-rock "Deus É
Amor", do primeiro álbum de Gal, de volta ao repertório da cantora no
show "Recanto", ele lança neste fim de mês "Luau MTV Jorge Benjor",
gravado em Paraty. Sem inéditas desde "Reactivus Amor Est", de 2004, o
pai do samba-rock tem sido incentivado pela legião de fãs a revisitar, a
bordo de seu emblemático violão acústico, o clássico "Tábua de
Esmeraldas", de 1974.
Mas a onipresença sessentista não trata apenas dos ídolos vivos. A
árdua reabilitação artística de Wilson Simonal (1939-2000), promovida
por meio do corajoso documentário "Ninguém Sabe o Duro Que Dei" (Calvito
Leal, Micael Langer, Cláudio Manuel), de 2009, e o livro "A Vida e o
Veneno de Wilson Simonal" (Ricardo Alexandre) desaguou nos CD e DVD "O
Baile do Simonal", iniciativa de seus filhos Max de Castro e Simoninha.
Também Elis Regina (1945-1982), inflamada porta-estandarte da MPB,
reencarna na pele e vocal da filha, Maria Rita, numa turnê patrocinada
pela empresa Nívea, por cinco capitais brasileiras. "Isso pra mim é
apenas uma homenagem à maior cantora que o Brasil teve e jamais terá",
decretou ela, engolfada no mesmo repertório e arranjos da mãe, cuja
celebração dos 30 anos da morte ainda incluirá documentário, livro e
exposição. As duas caixas com 25 CDs da passagem de Elis pela atual
gravadora Universal entre os anos 60 e 70, recém-editadas, estão
próximas de esgotar as primeiras duas mil cópias cada uma, uma soma de
quase 50 mil unidades consumidas.
O que explica tal equação atemporal, fustigada ainda na década de 70
por composições do então recém-chegado (e hoje desaparecido) cearense
Belchior, o mesmo autor de "Apenas um Rapaz Latino-Americano" ("mas
trago de cabeça uma canção do rádio/ em que um antigo compositor baiano
me dizia/ 'tudo é divino, tudo é maravilhoso'")? Seria o fenômeno
rotulado pelo crítico inglês Simon Reynolds como "retromania", a partir
de seu diagnóstico de estagnação da cultura pop, "viciada em passado"?
A internet promove, mas pulveriza. E
aprisiona os artistas em nichos, em alguns casos à mercê dos fã-clubes,
quase como uma "art delivery"
Pouco provável, no país autofágico de "Fora da Ordem", ácida diatribe
do supracitado Caetano: "Aqui tudo parece que ainda era construção/ e
já é ruína". Muito se deve à capacidade de reinvenção de boa parte
desses artistas - cada qual à sua maneira. Pela contramão, deslocando o
ouvinte de sua zona de conforto, como Caetano, Gal e o recente Chico. Ou
reafirmando seu culto às canções depuradas, num desafio à voz quase
nua, como a dramatúrgica Bethânia.
Em entrevista recente, Gilberto Gil referiu-se à sua geração como
"uma turma que chegava junto com a bossa nova para levar adiante o
trabalho de modernização da canção popular do país". Dava continuidade à
que foi chamada de linha evolutiva da MPB, de pés (e ouvidos) fincados
na universidade eclética do auge do rádio, batizada de era de ouro,
entre os anos 1930 e 50.
A geração de Carmen Miranda, Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio
Caldas, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Pixinguinha, Noel Rosa,
Ismael Silva, Ary Barroso, Braguinha, Lamartine Babo, Custódio Mesquita,
Assis Valente e adiante, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Ataulfo Alves,
Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Geraldo Pereira, Haroldo Lobo,
Wilson Batista, Nelson Cavaquinho, Cartola, Marlene, Emilinha, Cauby
Peixoto, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, entre muitos, usufruiu da
conjunção da potência radiofônica de alcance nacional com uma indústria
do disco em expansão, à medida que o país se urbanizava.
Nos anos 60, a distribuição da música recebeu um terceiro suporte e
uma nova inflexão. Iniciada de forma quase amadorística na década
anterior, a TV ganhava fôlego e musculatura, e seu combustível de
crescimento foi moldado na argamassa dos programas de humor e música. Às
vezes, numa conjunção deles, como no "Corte Rayol Show", do humorista
Renato Corte Real e do cantor Agnaldo Rayol, ou no competitivo "Esta
Noite se Improvisa", desafio à memória das estrelas musicais.
A grande repercussão do I Festival Nacional de Música Popular
Brasileira, da extinta TV Excelsior, no Guarujá (SP), em março e abril
de 1965, catapultou a vencedora, Elis Regina (com a música "Arrastão",
de Edu Lobo e Vinicius de Moraes), para a linha de frente de um programa
semanal de TV, "O Fino da Bossa", ao lado do sambista Jair Rodrigues.
"O Fino" faria a transição do banquinho e violão do movimento
inicial, sussurrado por João Gilberto e seus seguidores, para os
extrovertidos palcos da genericamente alcunhada MPB. E a TV ainda
abriria espaço para o pop/rock emergente dos cabeludos da Jovem Guarda,
de Roberto, Erasmo e Wanderléa, montados em roupas da marca Calhambeque,
num início da "marquetização" da idolatria, e até mesmo para as
gerações antecessoras, no "Bossaudade", liderado por Elizeth Cardoso e
Cyro Monteiro.
A vitrine escancarada aos novos - e repertórios obrigatoriamente
inéditos - dos festivais possibilitou a consolidação dos diversos
formatos da MPB e até a efetivação de um movimento de vanguarda como o
tropicalismo, num permanente diálogo com as grandes plateias. Aos poucos
esse tripé propulsor da música popular no Brasil foi sendo esvaziado. A
audiência das rádios perdeu espaço para o poder da imagem televisiva e,
com a passagem dos cachês pagos para as apresentações dos artistas
subsidiadas pelas gravadoras, aos poucos a TV, agora inteiramente
devotada ao folhetim eletrônico, também passou a transmitir apenas o
sucesso de ocasião, reservando à música o espaço subalterno das trilhas
de novelas.
Com a debacle da indústria do disco, minada pelo jabá e as piratarias
física e digital, as gerações musicais, a partir do BRock dos anos 80,
encontraram portas fechadas e saídas estreitas, como ocorreu ao "mangue
beat" pernambucano. Como se sabe, a internet e as redes sociais
promovem, mas também pulverizam. E aprisionam os artistas em nichos, em
alguns casos à mercê dos fã- clubes, quase como uma "art delivery".
Ou seja, a permanência dos ícones sessentistas deve-se, em primeiro
lugar, ao afortunado talento de vários deles, lapidado pelo permanente
contato com a massa indiscriminada - e não segregada, como o atual
projeto tosco das emissoras de TV de interpretar os supostos (maus)
gostos da emergente classe C. Como vaticinou Gilberto Gil em "Rep": "O
povo sabe o que quer/ mas o povo também quer o que não sabe".
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