segunda-feira, 30 de abril de 2012

Jesus e judeus são irmanados na mesma história de predestinação

Valor Econômico| Marília de Camargo Cesar | São Paulo

Os judeus ainda olham para Jesus como um profeta que fundou um movimento responsável por um legado de violência e tentativa de conversões forçadas de seu povo durante um período longo e cinzento da história. É um olhar de temor e de desconfiança. Mas já existe na consciência do judaísmo moderno um espaço para acolher uma compreensão diferente desse incômodo personagem. "Quisemos revisitar essa questão por acreditar que há maior tolerância e maturidade nas relações entre as religiões. Toda vez que um tabu é abordado, favorece o entendimento e dissipa tensões e forças ocultas que alimentam desconfiança e estranhamento", afirma o rabino Nilton Bonder, autor de 21 livros - alguns best-sellers -, entre eles o que inspirou a peça "A Alma Imoral", monólogo com a atriz Clarice Niskier, que levou pela interpretação o Prêmio Shell de melhor atriz em 2007. Bonder traz para São Paulo neste mês o curso "Jesus - Um Olhar Judaico", no Centro de Cultura Judaica (22 e 29 de maio e 5 de junho).

O evento está sendo realizado na Midrash Centro Cultural do Rio, neste mês. Com inscrições esgotadas, o curso está sendo frequentado majoritariamente por judeus interessados em conhecer a figura histórica e os acontecimentos em torno dela, e por 40% de não judeus que desejam compreender a visão judaica sobre o tema. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual o significado de Jesus para os judeus?

Nilton Bonder: Jesus se transformou num tabu para os judeus. Por um lado, ele toca numa ferida milenar, gerando temor. Por outro, sugere algo proibido, suspeito de promover o proselitismo sobre os judeus. Há razão para esses dois sentimentos: perseguições e também tentativas de conversão forçada dos judeus. Mas a história de Jesus é parte da história judaica e nos ajuda a compreender o período rico e complexo do primeiro século, que não apenas produziu o universo cristão, mas também forjou a tradição rabínica enraizada nos mesmos eventos espírito-psico-políticos desse período.

Valor: Existe uma percepção de que a figura de Jesus é desprezada pela tradição judaica, como um lunático que disse coisas absurdas, como por exemplo, "eu e o Pai somos um". Essa percepção é correta?

Bonder: Existem dois 'Jesus' para os judeus. O primeiro era um personagem típico da escola profética judaica - reverenciado por um grupo e motivo de chacota de outro. Profetas eram idiossincráticos e não era incomum que fossem tratados como utópicos. Eram tolerados se inofensivos à estabilidade social, mesmo quando questionavam os interesses de grupos privilegiados. Mas aqueles eram tempos de instabilidade política, que se traduzia pela conotação apocalíptica das sublevações ao domínio romano sobre os judeus, e que obrigava a elite política e clerical a "pisar em ovos" na tentativa de resguardar suas regalias e prerrogativas junto ao invasor. Nesse contexto, Jesus é um profeta em tempos perversos e ele participa da fragmentação de um povo que só não estava em guerra civil porque tinha um inimigo em comum: o invasor romano.

Valor: Ele despertava sentimentos contraditórios.

Bonder: O lado desafiador de Jesus era visto por seus seguidores como algo grandioso na compreensão de seu simbolismo para além da vida e do momento político; para outros, eram atos ensandecidos que não levariam a nada diferente de sua execução, como outros tantos que já haviam experimentado da pouca tolerância romana a sublevações. As lideranças político-religiosas dos judeus não sabiam o que fazer com Jesus, como também não sabiam o que fazer com outras tantas formas de inconformismo dos judeus, de Zelotas a Essênios, que não mediam consequências para acabar com a dominação romana e que levariam à destruição de Jerusalém e à devastação de sua nação. É um Jesus que tem implicações políticas e que desafia o status quo. É a liderança judaica que o entrega para que seja executado. Mas os judeus, como grupo ou etnia, não são os executores de Jesus. Quando, séculos depois, o cristianismo se estabelece como religião em outras partes do mundo, então os judeus aparecem como personagens hegemônicos, responsáveis pelo sofrimento de Jesus.

Valor: Que significado tem o segundo Jesus?

Bonder: É um personagem mítico, conhecido como o símbolo máximo da religião que persegue os judeus e que deseja sua conversão, mesmo que forçada. Um personagem que legitimava "judiar" dos judeus como eles haviam "judiado" de Jesus. A cruz, símbolo da fé cristã, passa a ser vista como símbolo de temor e opressão. A inquisição é o ápice desse processo. E os judeus se tornam sarcásticos do mundo redimido e amoroso que Jesus teria deixado como legado, já que experimentavam tanta violência em seu nome.

Valor: Que imagem prevalece?

Bonder: A de desconfiança e temor. Há um processo de mudança, e isso se deve ao esforço do diálogo e a passos dados pela Igreja nas últimas décadas. Infelizmente, no entanto, se você fizer o dever de casa e ouvir pregações nas igrejas, vai ficar impressionada com a caracterização violenta que é feita dos judeus, equiparando-os a todas as formas de poder e opressão. Os judeus são reacionários, representam o interesse dos ricos e dos hipócritas e de todos aqueles que querem obstaculizar o reino dos céus. Enfim, fariseus, no sentido derrogatório da palavra. Estudos como esse que promovemos visam apresentar aos judeus um Jesus que não é responsável pelo sofrimento dos judeus nos últimos 18 séculos, mas é, sim, um modelo do que seria feito aos judeus no decorrer do tempo. Em algum lugar, os judeus se fazem o Jesus da história, proféticos e desafiadores em sua existência e inúmeras vezes crucificados por esses crimes. Isso, a tal ponto que leva artistas do século passado, entre eles [Marc] Chagall, a representar os judeus na cruz como imagem da realidade judaica dos pogroms e genocídios.


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