domingo, 1 de janeiro de 2012

"Morte aos selvagens unitários"

A reescrita da história é uma tarefa permanente do poder, como a história do Brasil ensina de cátedra. Houve um tempo em que o marco fundador do país era comemorado em 12 de outubro, o aniversário do imperador dom Pedro I. O século XIX terminou com a reverência à memória de Tiradentes, executado pela avó do primeiro monarca. Mais recentemente um inimigo dos republicanos positivistas, Antonio Conselheiro, ganhou ares libertários e uma onda ufanista e tardia de desenvolvimentismo faz com que hoje a memória de Juscelino Kubitschek seja disputada por governistas e oposicionistas, enquanto a lembrança de Getúlio Vargas se esmaece.

Se assim é no Brasil, um país em que a cada 15 anos esquece-se tudo o que se passou nos últimos 15 anos, como brincou uma vez o jornalista Ivan Lessa, a reescrita chega ao paroxismo na Argentina. A presidente Cristina Kirchner vai na linha oposta à de Luiz Inácio Lula da Silva e seu famoso bordão "nunca antes na história deste país". No universo cristinista, o debate de hoje é a mesma história de sempre. Guarda semelhança com certos romances do realismo fantástico, em que o passado, na verdade, jamais passa, e as situações se repetem em um moto perpétuo. Pode-se assim reivindicar o legado de caudilhos contemporâneos da formação do país e atribuir aos adversários uma folha corrida herdada das caravelas.

A primeira e mais óbvia alegoria kirchnerista envolve o casal Juan e Eva Perón, protagonistas aliás de um filme exibido este ano na Argentina e muito elogiado pela presidente. É uma epifania invertida, em que desta vez é a mulher que sobrevive ao homem e organiza o culto em sua memória. Na história de Juan e Eva, coube ao general viúvo patrocinar a idolatria à falecida primeira dama.

Intolerância cresce na Argentina

A segunda investida, de mais difícil compreensão, mas de alcance muito maior, é o resgate da memória de Juan Manuel de Rosas. O caudilho foi deposto do governo de Buenos Aires em 1852, em um tempo em que a Argentina ainda não tinha um poder central. Rosas foi obrigado a um exílio até a morte na Inglaterra por outro caudilho, Urquiza, apoiado por uma força expedicionária brasileira. Sete anos antes, enfrentou tropas francesas e inglesas na foz do rio da Prata, para manter a navegação fluvial fechada a estrangeiros. O dia da batalha tornou-se feriado este ano no país, por obra da presidente.

A cerimônia, que aconteceu no dia 20 de novembro, tão cedo não será esquecida. Cristina criou o "Instituto Histórico Revisionista Manuel Dorrego", cujo nome é auto-explicativo e colocou no peito a insígnia federalista, o partido de Rosas. Reviver Rosas é, de certo modo, evocar um estilo de se fazer política. Enquanto governou Buenos Aires, fechou o rio da Prata para o comércio internacional, o que significava trancar o país inteiro. Estrangulou a classe mercantil, mas estimulou uma indústria rudimentar para substituir as importações. Mas se notabilizou por ter usado com habilidade a propaganda política como arma no início do século XIX.

A primeira engrenagem desta ferramenta foi a demonização da oposição. "Morte aos asquerosos, imundos e selvagens unitários" era um lema que estava nos jornais, nos teatros, nas escolas e até no púlpito das igrejas. O discurso satanizador ligava os opositores a violências como enterrar vivos a adversários, e à entrega das riquezas nacionais a estrangeiros.

O segundo passo foi criar uma identidade visual para cada grupo. Os federais se vestiam de forma tradicional, usavam bigode e adereços em vermelho. Os imundos unitários eram aqueles que se vestiam de forma mais moderna e apresentavam-se de rosto liso. O passo seguinte foi estimular a concretização do lema do regime, ou seja, a promoção da morte "da raça de víboras" por um braço armado do rosismo, a "mazorca".

Com o fim de Rosas, o poder "unitário" iria abrir caminho para uma oligarquia rural e mercantil ditar os rumos do país por oitenta anos e retribuir o carinho na mesma moeda a seus inimigos. Autor de "Civilização e Barbárie", um libelo contra Rosas, o presidente Domingos Sarmiento aconselhou em um escrito a não se economizar o sangue dos "gauchos", ou homens do campo, porque pelo menos para regar a terra ele haveria de servir. As metáforas zoomórficas permaneciam quando Perón chegou ao poder e a multidão que o apoiava foi classificada como "aluvião zoológico" por um deputado da oposição.

O casal Kirchner parecia distante deste modelo ao chegar ao poder em 2003 em uma aliança entre diversos setores sociais e políticos. À medida que se fortaleceu, foi abandonando a composição política, até fechar-se em uma equação familiar. Cristina tomou posse em seu segundo mandato recebendo a faixa presidencial da filha e jurando em nome do marido. Governa utilizando 100% da capacidade instalada de exercer a autoridade e o filho Maximo Kirchner, é um dos homens mais influentes do país.

O câncer na tireoide atinge Cristina no momento em que a questão que se colocava para 2012 para a Argentina é se ela iria ou não evocar a tradição de Rosas para além do simbólico. Quem lê os jornais argentinos pode acreditar que o país pode ganhar os contornos da Rússia de Vladimir Putin ou da Venezuela de Hugo Chávez a médio prazo. Até agora, convém duvidar, e a própria transparência com que a doença foi tratada em um primeiro momento a afasta da comparação com o venezuelano.

Não há quem aponte um gesto concreto da presidente fora da institucionalidade. Cristina não é suspeita de mandar envenenar inimigos com cápsulas radioativas, não colocou adversários no exílio e nem convocou plebiscitos para se perpetuar no poder. Com seu provincianismo exarcebado e seu estilo imperial de governar, apenas cultiva por ora a intolerância como traço seminal da política argentina.
César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras
E-mail cesar.felicio@valor.com.br

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