RIO - Ivone Caetano, de 67 anos, foi a primeira mulher negra a se tornar
juíza do Tribunal de Justiça do Rio, há 18 anos. De lá para cá, o país
vem registrando diminuição da desigualdade entre negros e brancos e
homens e mulheres. Apesar desses avanços, no entanto, Ivone segue como
exceção nas estatísticas. É o que mostram tabulações do Censo 2010
feitas com exclusividade pelo GLOBO. Nas carreiras de maior renda, as
mulheres e os brasileiros que se autodeclaram pretos ou pardos ao IBGE
são, quase sempre, minoria e, mesmo ali, tendem a ganhar menos. Das 438
profissões listadas no Censo, em só 16, ou 4% do total, a renda média
dos trabalhadores pretos e pardos supera a dos brancos. No caso das
mulheres, o número de ocupações em que a renda média supera a de homens
chega a 49, ou 11% do total.
A profissão de Ivone exemplifica bem a desigualdade. Juízes são,
segundo o IBGE, a profissão mais bem paga do país, com renda média de
quase R$ 17 mil. As mulheres nessa ocupação, no entanto, representam
apenas 31% do total, e recebiam, em média, 23% a menos do que os homens
juízes.
Entre juízes,só 13% de negros
Encontrar
magistrados pretos ou pardos é ainda mais raro. Apesar de eles
representarem cerca de metade da população, entre juízes a proporção é
de 13%. Excetuando ocupações com número muito baixo de trabalhadores, é a
profissão com o menor percentual desse grupo entre todas do Censo. E
eles ganham, em média, 14% a menos que seus colegas brancos.
— Na
minha profissão, sempre fui tratada com muito respeito, mas há
manifestações veladas de preconceito. Como afirmou a (ex-senadora)
Marina Silva, ‘o desvalor da pessoa traz o desvalor da palavra’: é ver
que o que você diz não é tão levado em conta
— afirma Ivone, juíza
titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da capital.
Com
mãe lavadeira de 11 filhos “abaixo da linha da pobreza”, a juíza
estudou em colégio público “e particular de baixa qualidade”. Aos 18
anos, foi trabalhar como digitadora do IBGE; depois, acumulou o trabalho
com outros dois, passando a ter três empregos ao mesmo tempo, para
ajudar a família.
— Entrei com 25 anos na faculdade de Direito, e
só entrei porque casei: meu marido, engenheiro, tinha condições
financeiras, então pude parar de trabalhar e ir estudar. Advoguei e
passei para a magistratura em 1994, com 49. Alguém só consegue passar
num concurso aos 49 anos e você vai dizer que não há desigualdade? — diz
Ivone.
No outro extremo, o das profissões mal remuneradas, a
lógica é na mão inversa: pescadores, por exemplo, estão entre as dez
profissões com maior proporção de pretos e pardos (72%). A ocupação
figura também na lista das dez profissões de pior remuneração média (R$
396). Mas, mesmo nesse trabalho de pouca qualificação, a renda média de
brancos também supera a dos colegas da mesma profissão em 55% (R$ 522
para brancos, R$ 337 para pretos e pardos).
— A gente vê que há
bem menos negros na pesca industrial, por exemplo, uma área que tem
lucros maiores. Na pesca artesanal é que os negros conseguiram achar
suas pequenas oportunidades — diz o pescador José Manoel Rebouças, que
se define como mulato “mais para o pardo”.
Com 53 anos e na
profissão desde os 12, seu Manoel é secretário da colônia de pescadores
Z-13, em Copacabana, Zona Sul do Rio. Diz tirar com a pesca, por mês,
média de dois salários mínimos, com os quais sustenta três dos sete
filhos que tem, e que moram com ele no Pavão-Pavãozinho; os outros,
assim como a mulher, ficaram no Ceará, terra natal do pescador.
Entre
as poucas ocupações em que pretos e pardos têm renda superior estão
bombeiros, PMs, e atletas e esportistas. Entre as de maior desigualdade,
o economista Marcelo Paixão, do Laboratório de Estudos sobre
Desigualdades Raciais da UFRJ, destaca que estão muitas de alto
prestígio:
— Não basta ao negro “chegar lá”. Mesmo chegando, pode ter remuneração proporcionalmente menor.
O
sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, concorda que há de
fato alguma diferença explicada pela discriminação. Ele pondera, porém,
que fatores como idade, nível educacional, lugar de residência e número
de horas trabalhadas, que pouco ou nada têm a ver com discriminação no
mercado de trabalho, respondem por boa parte da desigualdade.
Um
médico branco, por exemplo, pode ter se formado numa universidade de
prestígio, enquanto um negro pode ter tido acesso a uma instituição
menos reconhecida. Nas estatísticas eles podem parecer iguais, mas o
profissional formado numa instituição de melhor qualidade tende a ser
mais bem remunerado no mercado de trabalho. Neste caso, a desigualdade
está no acesso ao curso superior, e não no fato de o empregador pagar
menos só pelo fato de o funcionário ser negro.
Também é preciso
levar em conta que, como apenas recentemente pretos e pardos aumentaram
sua presença em cursos universitários de maior prestígio, na média, eles
tendem a ser trabalhadores mais jovens, com menos experiência e que,
também por isso, ganham menos.
Ainda que o o Censo de 2010
registre desigualdades persistentes de gênero e cor, é preciso
considerar que houve avanços. Contas feitas pelo Laboratório de Estudos
sobre Desigualdades Raciais da UFRJ revelam que os grupos que
registraram os maiores aumentos de renda e escolaridade na década
passada foram, justamente, mulheres e pretos e pardos. Enquanto a renda
média de homens brancos subiu apenas 4% no período, já considerando a
inflação, a de mulheres brancas aumentou 15%. Homens que se declararam
pretos ou pardos registraram acréscimos de 21%. E o grupo que mais
avançou foi o de mulheres pretas ou pardas: 28%.
Ainda assim,
considerando o total de trabalhadores, o rendimento das mulheres negras
representam apenas 39% do que recebe um homem branco. Há dez anos, era
31%.
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