Um falso atalho - O Globo (Opinião)
Quase sempre, em assuntos intrincados, as soluções aparentemente mais fáceis, baseadas em ideias derivadas do rasteiro senso comum, são as erradas. E, se estiverem embaladas em ideologias, mais ainda. O grande exemplo no Brasil dos últimos oito anos é a política de cotas raciais, de cunho discriminatório pernicioso, porém azeitada por argumentos "do bem". Como acontece nessas situações, este tipo de política se fundamenta em fatos verdadeiros, manejados para justificar equívocos.
Não se discute que o Brasil, além de ter sido o último a abolir a escravidão, nada fez para a sociedade do século XIX absorver os ex-escravos - não mais como força de trabalho cujo custo para os donos era a manutenção dela fisiologicamente viva, mas como cidadãos. Faltaram educação e treinamento, políticas inclusivas, como se diz. Sobre este passado, constrói-se a tese da "reparação histórica". Edifica-se a ideia de uma "reparação", cujo resultado é, mais de 120 anos depois da Abolição, dificultar o acesso ao ensino superior e ao emprego público do pobre de pele clara e baixa instrução.
Funciona, aqui, o mecanismo da enganosa simplicidade de coisas complexas. O senso comum não considera que negros também eram senhores de escravos no Brasil. Mercadores, inclusive. Nem que a "mercadoria" era capturada na África por outros negros, de tribos inimigas, e vendida a "comerciantes", num abjeto negócio. Tampouco leva em conta a diferença visceral entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos - de onde a ideologia de sustentação da política de cotas, das "ações afirmativas" foi importada. Qualquer subjugação do ser humano é repulsiva, mas, enquanto houve miscigenação no Brasil - uma virtude da sociedade brasileira, nos últimos anos sob ataque racialista -, os Estados Unidos se constituíram sobre o conceito inaceitável de "raças". Se muitos negros não ascendem socialmente no Brasil não é pela cor da pele. É pela má qualificação determinada pela pobreza. Também o branco pobre enfrenta as mesmas barreiras.
O Rio de Janeiro deu o primeiro passo nas cotas raciais para o ensino superior, na universidade do estado (Uerj). Há pesquisas indicando que os cotistas apresentam, em alguns casos, melhor rendimento que não cotistas. Pode ser, mas continua inaceitável um jovem tomar a vaga de um outro jovem apenas devido à cor da pele. Há pouco, o governo fluminense decidiu dar mais um passo e instituiu a cota no emprego público - dispositivo existente no projeto do Estatuto da Igualdade Racial, em tramitação no Congresso. A parcela de 20% das vagas estará reservada a negros e índios. Rende votos, é politicamente correto. E a questão do emprego e do ensino continua para ser equacionada. É grave quando o mérito passa para segundo plano, não importa por qual motivo: partidários, ditos sociais, étnicos, quais sejam. Afastar jovens do ensino superior ou pessoas do mercado de trabalho no setor público por não serem "negros", "pardos" ou "índios" é injetar na sociedade o veneno do racismo. Funciona ao contrário do que pregam ideólogos do racialismo. Se o "Estatuto" virar lei federal, cumprirá esta função com eficiência.
Enquanto isso, a única "ação afirmativa" desejável, a melhoria do ensino público básico e profissionalizante, forma adequada para qualificar o jovem de famílias de baixa renda, sem discriminações racistas, continua um alvo em horizonte longínquo. Mas as "cotas" garantem votos para já.
O alcance das cotas raciais - Edson Santos (Outra opinião)
A população brasileira deixou de ser majoritariamente branca, segundo o Censo 2010. É notícia animadora, pois indica a elevação da autoestima do povo durante a última década. O aumento no percentual de pretos e pardos não foi registrado só entre os mais jovens, mas também nos segmentos etários intermediários, demonstrando claramente um sentimento de pertencimento e de maior identificação do cidadão com a cor de sua pele. Essa mudança se explica pelo sucesso das políticas e iniciativas, públicas e privadas, para promover a igualdade de direitos e oportunidades entre os segmentos étnicos da população.
A cara da nova classe média é negra, e o mercado já acordou para este fato. No entanto, embora essas transformações estejam ocorrendo de forma semelhante em outros níveis e itens da vida nacional, a diferença que separa negros e brancos no Brasil ainda se traduz em índices de enorme desigualdade. Neste sentido, é revelador o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil - 2009/ 2010, organizado pelo professor Marcelo Paixão e divulgado pela UFRJ.
O documento mostra que a população negra brasileira está em desvantagem no acesso a serviços públicos, como educação, saúde, justiça e previdência social, recebe uma menor renda e tem uma expectativa de vida mais baixa do que outros segmentos. As raízes desta situação são históricas. Pois a mudança da categoria de escravos para a de homens e mulheres livres, em 13 de maio de 1888, não foi capaz de alterar o quadro de exclusão da população negra, na medida em que não veio acompanhada da garantia de acesso à terra, ao trabalho, à saúde e à educação.
Ainda hoje, mais de 120 anos após a Abolição, a fragilidade socioeconômica do segmento é notável. Não é por acaso que os negros são maioria entre os beneficiários do Bolsa Família, e que, de acordo com o Censo, representem 70% das pessoas que sobrevivem em situação de extrema pobreza. Estas constatações apontam a necessidade de aprofundar e dar sustentabilidade às políticas de promoção da igualdade racial, que devem ser tomadas com o objetivo de tornar os extratos elevados da pirâmide social mais permeáveis à presença de pretos e pardos.
O foco dessas políticas, conhecidas como ações afirmativas, deverá estar voltado principalmente para a Educação e a qualificação para o trabalho. Dessa forma será possível mudar o quadro das relações raciais no Brasil. O Programa Universidade para Todos (ProUni), a adoção de cotas raciais em universidades públicas e a progressiva valorização da matriz cultural negra no sistema educacional brasileiro são medidas importantes, mas é preciso muito mais.
Além do amplo reconhecimento da gravidade da questão racial que atinge a maioria de nossa população, pela primeira vez na história do país temos formalizado, no Estatuto da Igualdade Racial, o direito a ações afirmativas. O desafio é materializar esse direito, uma vez que há diferença entre o legal e o real. Pois, embora seja uma ferramenta importante, a legislação, sozinha, não é capaz de promover mudanças estruturais no país. Apenas a união de todos - governo, Parlamento, Judiciário, sociedade civil a e iniciativa privada - poderá desencadear um amplo processo de reestruturação do Estado democrático.
O Globo / Opinião / 13/06/2011
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