Livre trânsito de ideias
Ao liberar a realização em todo o país das chamadas Marchas da Maconha (e manifestações similares em defesa da descriminalização do uso de drogas), o Supremo Tribunal Federal encerrou uma discussão prejudicada por malentendidos. Proibidos em alguns estados, liberados em outros, os protestos convocados davam margem a interpretações, por parte das autoridades contrárias a eles, que ameaçavam resvalar para afrontas ao direito constitucional da liberdade de opinião. O voto unânime de oito dos 11 ministros da Corte presentes à sessão de quarta-feira passada põe fim a esses desacertos de maneira incontestável: o STF fez valer seu papel de guardião da Constituição, deixando claro que a Carta garante aos cidadãos o livre trânsito de ideias. Este é um princípio inegociável das democracias — e não é outro o objetivo das manifestações, qual seja, sensibilizar a sociedade para o debate sobre um tema inscrito na agenda de todos países atingidos pelo flagelo das drogas.
Que fique claro que o STF deu um veredicto em defesa da Constituição, e não em favor da descriminalização das drogas Mas é fora de dúvida que a posição da Corte leva água para esse cada vez mais inadiável debate. A expansão do consumo em todo o mundo é prova inquestionável da falência da política, ainda predominantemente adotada nos fronts da guerra contra os entorpecentes, escorada em princípios policial-militares.
A mais clara evidência de que tal modelo não tem logrado reduzir substancialmente o comércio e o uso de substâncias entorpecentes está encravada no país que o capitaneia — os Estados Unidos. Dentro das fronteiras americanas, o número de pessoas presas, seja pelo consumo ou por envolvimento com o tráfico, registra curvas ascendentes, e as verbas destinadas ao combate às drogas são cada vez mais generosas. Os resultados, no entanto, são pouco estimulantes para um problema que se agrava a cada ano. Fora de seus limites territoriais, as investidas contra o tráfico internacional feitas pela ótica de guerra de Washington também não têm maior sucesso. Mesmo quando um determinado cartel é derrotado num país, a migração daí decorrente, dos laboratórios e da rede de traficantes, leva o tráfico para outras áreas, sem prejuízo do movimento e do faturamento das quadrilhas.
O contraponto a essa ortodoxa política propõe que se trate tão grave problema pela ótica da saúde pública, com uma política de redução de danos (que ofereça aos viciados a possibilidade de tratamento) e transferindo a questão do consumo da alçada das delegacias policiais para o âmbito de hospitais e clínicas especializadas. E, no que toca à legislação, com a descriminalização do uso de drogas leves, como a maconha, a mais consumida, sem prejuízo de uma política dura contra o tráfico. Países que têm adotado esta visão, entre eles Portugal, contabilizam resultados estimulantes nas estatísticas de redução do consumo.
Em defesa dessa maneira de enfrentar o flagelo há influentes vozes em todo o mundo, como os ex-presidentes Fernando Henrique (que coordena uma comissão internacional pela descriminalização) e o americano Jimmy Carter. É esta discussão que a decisão do STF, em favor do direito à livre troca de opiniões, certamente há de recolocar na ordem do dia no país. O fundamental, na votação da semana passada, é que a Corte reafirmou a prevalência da Constituição na espinha institucional do país. Cumpre agora debater a questão das drogas, com a liberdade garantida pela Carta e avalizada pelo Supremo.
Ao liberar a realização em todo o país das chamadas Marchas da Maconha (e manifestações similares em defesa da descriminalização do uso de drogas), o Supremo Tribunal Federal encerrou uma discussão prejudicada por malentendidos. Proibidos em alguns estados, liberados em outros, os protestos convocados davam margem a interpretações, por parte das autoridades contrárias a eles, que ameaçavam resvalar para afrontas ao direito constitucional da liberdade de opinião. O voto unânime de oito dos 11 ministros da Corte presentes à sessão de quarta-feira passada põe fim a esses desacertos de maneira incontestável: o STF fez valer seu papel de guardião da Constituição, deixando claro que a Carta garante aos cidadãos o livre trânsito de ideias. Este é um princípio inegociável das democracias — e não é outro o objetivo das manifestações, qual seja, sensibilizar a sociedade para o debate sobre um tema inscrito na agenda de todos países atingidos pelo flagelo das drogas.
Que fique claro que o STF deu um veredicto em defesa da Constituição, e não em favor da descriminalização das drogas Mas é fora de dúvida que a posição da Corte leva água para esse cada vez mais inadiável debate. A expansão do consumo em todo o mundo é prova inquestionável da falência da política, ainda predominantemente adotada nos fronts da guerra contra os entorpecentes, escorada em princípios policial-militares.
A mais clara evidência de que tal modelo não tem logrado reduzir substancialmente o comércio e o uso de substâncias entorpecentes está encravada no país que o capitaneia — os Estados Unidos. Dentro das fronteiras americanas, o número de pessoas presas, seja pelo consumo ou por envolvimento com o tráfico, registra curvas ascendentes, e as verbas destinadas ao combate às drogas são cada vez mais generosas. Os resultados, no entanto, são pouco estimulantes para um problema que se agrava a cada ano. Fora de seus limites territoriais, as investidas contra o tráfico internacional feitas pela ótica de guerra de Washington também não têm maior sucesso. Mesmo quando um determinado cartel é derrotado num país, a migração daí decorrente, dos laboratórios e da rede de traficantes, leva o tráfico para outras áreas, sem prejuízo do movimento e do faturamento das quadrilhas.
O contraponto a essa ortodoxa política propõe que se trate tão grave problema pela ótica da saúde pública, com uma política de redução de danos (que ofereça aos viciados a possibilidade de tratamento) e transferindo a questão do consumo da alçada das delegacias policiais para o âmbito de hospitais e clínicas especializadas. E, no que toca à legislação, com a descriminalização do uso de drogas leves, como a maconha, a mais consumida, sem prejuízo de uma política dura contra o tráfico. Países que têm adotado esta visão, entre eles Portugal, contabilizam resultados estimulantes nas estatísticas de redução do consumo.
Em defesa dessa maneira de enfrentar o flagelo há influentes vozes em todo o mundo, como os ex-presidentes Fernando Henrique (que coordena uma comissão internacional pela descriminalização) e o americano Jimmy Carter. É esta discussão que a decisão do STF, em favor do direito à livre troca de opiniões, certamente há de recolocar na ordem do dia no país. O fundamental, na votação da semana passada, é que a Corte reafirmou a prevalência da Constituição na espinha institucional do país. Cumpre agora debater a questão das drogas, com a liberdade garantida pela Carta e avalizada pelo Supremo.
O Globo / Opinião / 20/06/2011
Evitar um mal maior
Uma grande polêmica levantada nos tribunais estaduais chegou à apreciação do plenário do Supremo Tribunal Federal: o poder público e o Judiciário podem proibir as chamadas Marchas da Maconha? Essa proibição afrontaria o direito da liberdade de expressão?
No entendimento de muitas cortes estaduais, inclusive do Tribunal de Justiça de São Paulo, esse tipo de manifestação instiga práticas delitivas, induzindo ao uso de substância entorpecente, no caso a maconha, proibida no Brasil. Para esses magistrados, não se trata de simples manifestação pública para debater ideias, pois é capaz de gerar um dano social.
Ao assegurar a todos os cidadãos a proteção constitucional da liberdade de expressão, o ordenamento jurídico veda restrições a pensamentos, ideias e opiniões, contribuindo dessa forma para consolidar nossa democracia pluralista. No entanto, cabe ao Judiciário se debruçar sobre os casos concretos em que há uma colisão entre o exercício da liberdade de expressão e demais direitos fundamentais.
A sociedade brasileira tem manifestado preocupação com o problema do tráfico de drogas, da violência e do envolvimento dos jovens com o narcotráfico, desde a pré-adolescência, consumindo principalmente maconha, crack, óxi e outras substâncias entorpecentes. Inicialmente no papel de usuários e, posteriormente, agindo como pequenos traficantes a sustentar trágicas estatísticas.
Estudo da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro, apontou que o tráfico de drogas representa o segundo maior delito nas condenações dos tribunais brasileiros, só sendo superado pelo roubo qualificado.
Certamente, o sistema constitucional, ao garantir a liberdade de expressão, não estabelece esse direito como absoluto, fixando limites e responsabilidade com base nos valores defendidos pela sociedade, também previstos na Carta Magna.
Se perguntássemos a qualquer cidadão se a Marcha da Maconha viola bens constitucionais igualmente protegidos, creio que a resposta seja afirmativa. Assim sendo, a restrição ao direito da liberdade de expressão, no caso da Marcha da Maconha, pode ser entendida e analisada pelo princípio da proporcionalidade no Direito, ou seja, do poder-dever do poder público em estabelecer
princípios e valores no sentido de harmonizar diferentes interesses em torno de uma solução que contemple a norma jurídica.
Diante de circunstâncias concretas e do confronto de princípios, onde temos de um lado o direito à liberdade de expressão versus o suposto ilícito do incitamento ao uso de drogas, é fundamental que o poder público saiba sopesar racionalmente sua decisão, assegurando a proteção dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Da mesma forma que entendemos inadmissível mesmo na sociedade democrática que os intolerantes de todos os matizes exponham seus discursos de ódio, consideramos que as decisões judiciais pela suspensão de Marchas da Maconha buscavam evitar um mal maior à sociedade. Se fosse o contrário, a Justiça estaria garantindo o direito de expressão de um grupo, mas ao mesmo tempo correndo o risco de incitar a prática de um crime e negar valores sociais.
Enfim, um dilema importante que a sociedade terá de enfrentar.
LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO é presidente da OAB-SP.
Uma grande polêmica levantada nos tribunais estaduais chegou à apreciação do plenário do Supremo Tribunal Federal: o poder público e o Judiciário podem proibir as chamadas Marchas da Maconha? Essa proibição afrontaria o direito da liberdade de expressão?
No entendimento de muitas cortes estaduais, inclusive do Tribunal de Justiça de São Paulo, esse tipo de manifestação instiga práticas delitivas, induzindo ao uso de substância entorpecente, no caso a maconha, proibida no Brasil. Para esses magistrados, não se trata de simples manifestação pública para debater ideias, pois é capaz de gerar um dano social.
Ao assegurar a todos os cidadãos a proteção constitucional da liberdade de expressão, o ordenamento jurídico veda restrições a pensamentos, ideias e opiniões, contribuindo dessa forma para consolidar nossa democracia pluralista. No entanto, cabe ao Judiciário se debruçar sobre os casos concretos em que há uma colisão entre o exercício da liberdade de expressão e demais direitos fundamentais.
A sociedade brasileira tem manifestado preocupação com o problema do tráfico de drogas, da violência e do envolvimento dos jovens com o narcotráfico, desde a pré-adolescência, consumindo principalmente maconha, crack, óxi e outras substâncias entorpecentes. Inicialmente no papel de usuários e, posteriormente, agindo como pequenos traficantes a sustentar trágicas estatísticas.
Estudo da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro, apontou que o tráfico de drogas representa o segundo maior delito nas condenações dos tribunais brasileiros, só sendo superado pelo roubo qualificado.
Certamente, o sistema constitucional, ao garantir a liberdade de expressão, não estabelece esse direito como absoluto, fixando limites e responsabilidade com base nos valores defendidos pela sociedade, também previstos na Carta Magna.
Se perguntássemos a qualquer cidadão se a Marcha da Maconha viola bens constitucionais igualmente protegidos, creio que a resposta seja afirmativa. Assim sendo, a restrição ao direito da liberdade de expressão, no caso da Marcha da Maconha, pode ser entendida e analisada pelo princípio da proporcionalidade no Direito, ou seja, do poder-dever do poder público em estabelecer
princípios e valores no sentido de harmonizar diferentes interesses em torno de uma solução que contemple a norma jurídica.
Diante de circunstâncias concretas e do confronto de princípios, onde temos de um lado o direito à liberdade de expressão versus o suposto ilícito do incitamento ao uso de drogas, é fundamental que o poder público saiba sopesar racionalmente sua decisão, assegurando a proteção dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Da mesma forma que entendemos inadmissível mesmo na sociedade democrática que os intolerantes de todos os matizes exponham seus discursos de ódio, consideramos que as decisões judiciais pela suspensão de Marchas da Maconha buscavam evitar um mal maior à sociedade. Se fosse o contrário, a Justiça estaria garantindo o direito de expressão de um grupo, mas ao mesmo tempo correndo o risco de incitar a prática de um crime e negar valores sociais.
Enfim, um dilema importante que a sociedade terá de enfrentar.
LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO é presidente da OAB-SP.
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