segunda-feira, 20 de junho de 2011

Resgate da memória

A polêmica sobre tornar públicos documentos do Estado brasileiro considerados ultrassecretos envolve questões fundamentais que dizem respeito ao resgate da memória do País. A questão do sigilo desses documentos não poderia nem deveria ser objeto de barganhas partidárias ou outras, porque compromete a compreensão da nossa própria História. A História do Brasil deveria situar-se para além de qualquer disputa política.

O projeto de lei que tramita no Senado, depois de ter sido aprovado na Câmara dos Deputados, estipula em 25 anos, com uma única renovação possível, o período máximo do sigilo, o que já é até um tempo abusivo, pois significa meio século de desconhecimento de um período relevante do País. Agora, a alegação de que mesmo esse período seria curto, exigindo uma espécie de segredo eterno, foge a qualquer regra de razoabilidade. O País tem o direito de conhecer sua própria História, qualquer que seja, mesmo que escape aos cânones atuais do politicamente correto. Arquivos históricos não deveriam estar submetidos às intempéries da política.

A História das nações não é a história do politicamente correto. Nações não são anjos, nem os homens estão voltados necessariamente para o bem, tendo, igualmente, propensão para o mal. Hegel já dizia que a História não é o lugar da felicidade. Pretender impor retroativamente critérios atuais do certo e do errado significa desconhecer a própria natureza humana.

Argumentos têm sido veiculados de que a divulgação desses documentos comprometeria nossas relações com Estados vizinhos, em particular com o Paraguai, em razão da guerra travada com esse país no século 19, e com a Bolívia, a propósito das ações do barão de Rio Branco na demarcação do Estado do Acre. Ora, o traçado de fronteiras, em toda a História da humanidade, envolveu guerras e os mais diferentes tipos de contratos e tratados. São fatos que deveriam ser reconhecidos como tal. Pensar diferentemente é como se apenas o Brasil devesse "envergonhar-se" do seu passado.

Mais importante ainda, deixamos de conhecer uma parte importante da nossa História que só a abertura desses arquivos poderia propiciar. Países aprendem com seus erros e acertos, assim como as pessoas. Quem esconde algo é porque nada quer aprender. A ignorância não é uma lição de aprendizagem.

Aliás, o que poderia acontecer nas relações atuais com o Paraguai e a Bolívia, se eles tivessem acesso a tais documentos, se é que já não os possuem? Reivindicariam territórios e ameaçariam militarmente o Brasil? Invadiriam o País em nome de sua "causa"? Essa hipótese não tem o menor cabimento. Nada aconteceria. As fronteiras brasileiras permaneceriam como estão, não havendo nenhuma modificação.

Os EUA travaram uma longa guerra com o México que mudou as fronteiras desses países. O México perdeu vários territórios. Os documentos do que aconteceu são públicos e as fronteiras atuais dos dois países nem por isso foram alteradas. Os EUA, ademais, compraram o Alasca do czar da Rússia no século 19, tendo esse território se tornado um Estado americano. O episódio é conhecido e, no entanto, não haverá nenhuma modificação de fronteiras. Alguns podem mesmo considerar o preço pago barato demais!

A Europa, em passado recente, posterior à 2.ª Guerra Mundial, foi objeto de um redesenho de suas fronteiras entre os vencedores e os vencidos. Um mapa do século 19 é muito diferente de um mapa do início do século 20. Alguns Estados podem estar descontentes, porém nada disso alterará o atual traçado. A Lorena e a Alsácia sempre foram objeto de litígio entre a Alemanha e a França. As atuais fronteiras, contudo, não são objeto de contestação, ainda que tenham sido fruto de um fato de guerra.

O mesmo vale para a discussão quanto a tornar públicos os documentos relativos ao regime militar no nosso país. Todos os documentos deveriam estar à disposição do público, em particular dos historiadores, que poderiam trabalhar com fontes de primeira mão. O problema não diz respeito a torturadores nem aos que pegaram em armas para instalar um regime comunista no Brasil. Embora de um ponto de vista ideológico a questão seja frequentemente posta dessa maneira, o problema é muito mais abrangente, porque diz respeito ao conhecimento das gerações atuais em relação à própria História nacional.

Se o País tem o direito de conhecer a tortura que ocorreu num determinado período, tem igualmente o direito de saber sobre os assassinatos e justiçamentos cometidos pelos que pretendiam impor aqui um regime totalitário. Se se fala da Comissão da Verdade, ela não pode omitir nenhum fato, sob pena de se tornar uma Comissão da Mentira.

Ressalte-se que se trata da História, da memória e do conhecimento. Não está aqui em questão uma suposta revisão da Lei da Anistia, assunto já pacificado do ponto de vista do Supremo Tribunal Federal e novamente confirmado pela Advocacia-Geral da União. O País pode se relançar sobre nossas bases, que perduram até hoje, tendo propiciado o mais longo período de democracia nacional. Um país só pode recomeçar se fizer uso do perdão - algo central, aliás, da doutrina cristã. Um país que não sabe repactuar-se consigo é um país imerso em revanches e vinganças de ambos os lados, que por isso mesmo se tornam intermináveis.

Eis por que o Brasil tem o direito de conhecer integralmente a sua própria História, algo que não diz respeito a pseudodenominações de "esquerda" e "direita", nem a questões de política externa baseadas no segredo e na ignorância nacional. Somente pelo resgate da própria memória um país pode trilhar um outro caminho, diferente em muitos aspectos de outros do seu passado. O futuro só se esboça verdadeiramente diferente graças ao pleno conhecimento do passado.

O Globo/Opinião - 20.06.2011 - Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS. 




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