Danilo Santos de Miranda tem formação em sociologia e filosofia, especializou-se em ação cultural e dirige desde 1984 a regional São Paulo do Serviço Social do Comércio (Sesc). Em sua gestão, as unidades paulistas do Sesc se tornaram uma das principais referências culturais do país. Além de atividades de lazer, os usuários têm acesso a exposições de arte, espetáculos teatrais, apresentações de música e outras manifestações de arte a preços acessíveis. A instituição tem mais de 1,6 milhão de pessoas matriculadas, mais de nove entre dez pertencentes às classes C, D e E.
Miranda ressalta o vínculo essencial entre a oferta de atividades de arte e a demanda por valores culturais mais amplos: saúde, serviços públicos, respeito às diferenças. "A sociedade vai exigindo, através dos meios de comunicação e da convivência com os demais. A percepção da vida melhor tem a ver com a necessidade de mais informação e mais conhecimento", afirma.
Valor: O crescimento da classe média no Brasil produz um novo tipo de consumo cultural...
Danilo Miranda: Em todas as áreas, inclusive no campo da cultura. Já é enorme a presença da nova classe média em tudo. Existe uma novidade efetiva, que é a busca do status através da informação para pessoas que antes não tinham acesso. Elas encaram essa possibilidade como o insumo fundamental para sua ascensão. O conhecimento leva a um emprego melhor, a uma vida melhor. A ascensão econômica integra uma busca de ascensão cultural. Há uma mistura desses dois sentimentos, dessas duas decisões de interesse.
Valor: Um dos problemas para identificar o fenômeno é a variedade de definições possíveis para o conceito de cultura.
Miranda: Procuro ser abrangente no entendimento da cultura. De modo geral, ela tem de ser definida como algo que abrange a vida do ser humano como um todo. A cultura define que alguém goste de tal camisa e não compre aquela outra. Isso não é só gosto. Tem a ver com valores: sobriedade ou exagero, por exemplo. Tudo isso é cultura. Ao entender essa abrangência, a cultura ganha um significado para toda a vida humana. Para mim, o entendimento efetivo de cultura tem a ver com o momento em que o indivíduo começa a ter contato com o outro. Tudo isso tem sentido cultural. Nascimento, vida, prolongamento, a escola, a busca permanente do conhecimento e da informação, o processo de comunicação inteiro.
Valor: O senhor mencionou o contato com o outro como central na cultura. No caso brasileiro, a introdução desse contato numa sociedade tradicionalmente sectária produz conflitos?
Miranda: Conflitos terríveis. O Brasil era um país escravocrata legalmente até 123 anos atrás. Isso é muito recente na história do ser humano. Fomos escravocratas ontem, achando que era a coisa mais normal. A igualdade e a diversidade, como valores fundamentais, são uma novidade difícil entre nós. Esses valores também se produzem culturalmente. Durante anos, os pais passam valores para os filhos sobre o outro. Se forem equivocados, essa visão se torna inerente à pessoa quando cresce. Quando o indivíduo se torna adulto, não consegue admitir a diferença como algo normal. O preconceito não é o problema. O problema é saber como se lida com o preconceito, ter a maturidade de perceber como as coisas são de fato. Portanto, o caso é: primeiro, a relação consigo mesmo; segundo, a relação com o outro. Um terceiro aspecto é a questão de onde estamos metidos, a relação com o urbano, o ambiente.
Valor: Como essas questões se manifestam no Sesc, que está em posição particularmente favorável para responder a essa expectativa cultural?
Miranda: Para nós, a cultura é mais central do que se imagina. O valor econômico é importante, mas o valor cultural vem sempre antes. Isso não quer dizer que saber, estudar, ler, conhecer, tocar um instrumento, vai dar dinheiro, mas, com esse nível de informação, com a capacidade melhor de entender a realidade, uma pessoa se prepara melhor para ganhar dinheiro. Para nós, o conceito de cultura tem a ver com convivência, com o ambiente, com uma relação adequada consigo mesmo, com seu corpo, com sua condição física, com sua saúde, seu bem-estar. Outra coisa é a convivência. A humanidade ainda está tomando consciência da igualdade. Só é um dado cultural fundamental desde o século XVIII. Até então, havia gente que achava que índio não tinha alma e negro não era gente. Então, advogava a escravidão. A percepção da igualdade está no fundamento de nossos conceitos de educação, cultura, democracia, acessibilidade etc.
Valor: No momento da instalação de uma unidade, como essa preocupação toma forma?
Miranda: Em Santo André, instalamos um Sesc entre três ou quatro favelas. Durante a obra, tínhamos invasões, gente que entrava na piscina sem autorização e outros problemas com o entorno. Era alguém estranho chegando. Quando inauguramos, procuramos trazer os moradores da região, de todos os níveis sociais, desde o mais pobre até o da classe média para usar os equipamentos, a piscina - se fizesse exame médico -, o computador com internet livre, desde que lavasse as mãos antes. Podia entrar descalço. Por que vou proibir que a pessoa entre descalça? Os moradores começaram a se apropriar do espaço e os próprios representantes dos grupos perigosos da região determinaram para os comparsas que no Sesc não se podia mexer.
Valor: Existe uma perspectiva de que o Sesc age onde o Estado falhou.
Miranda: Por sermos uma instituição híbrida, com função pública e estrutura jurídica de caráter privado, agimos sobre algo parecido com a área de atuação do Estado. Mas o Estado deveria cuidar só de duas áreas na cultura: fomento e infraestrutura. Incentivar, e não patrocinar diretamente. Ele tem um papel vital nessa cultura de caráter público, essa cultura é para todos, cultura como fomento e desenvolvimento de uma perspectiva educativa pública.
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