segunda-feira, 10 de julho de 2017

Quênia um mundo de muros - Somália as barreiras que nos dividem


Cerca erguida entre dois dos países mais pobres do mundo para tentar frear o terrorismo barra famílias assombradas por seca, doenças e um Estado falido

Noor Addow, 45, suas duas esposas e dez filhos andaram durante 17 dias. Fugindo da seca, da fome, do terrorismo e da epidemia de cólera na Somália, levavam apenas a roupa do corpo. As crianças, algumas descalças, outras com chinelos, tinham os pés cobertos de bolhas e de feridas.

Toda vez que passavam por um vilarejo, paravam na mesquita e mendigavam comida. Quando a água de suas vasilhas acabava, enganavam a sede chupando raízes que achavam no caminho. À noite, dormiam no mato, com medo dos leões e das hienas.

No 14º dia, Fatma, 19, a esposa mais nova de Noor, entrou em trabalho de parto.

Estava muito fraca. No vilarejo onde viviam na Somália, primeiro a represa secou, depois a plantação de milho morreu e, por fim, foram-se as cabras. Havia muitos meses que ninguém comia direito.

Fatma deu à luz embaixo de uma árvore. Eram gêmeos. Osman morreu no meio da noite, nos braços do pai. Khadija morreu de manhã, no colo da mãe. Não tiveram tempo para chorar. “Precisamos continuar andando, senão vamos perder mais filhos”, disse Noor.

Barwago, uma das esposas de Noor Addow, segura a filha Salado, 2, em
Dadaab, no Quênia – o maior campo de refugiados do mundo
(Lalo de Almeida/Folhapress)
Caminharam mais três dias e chegaram a Dadaab, no Quênia - o maior campo de refugiados do mundo, onde vivem 250 mil pessoas, na maioria somalis.

Os Addow não sabiam, mas não eram bem-vindos.

Um ano antes, o governo do Quênia anunciara que fecharia Dadaab. Segundo o presidente, Uhuru Kenyatta, o campo tinha se transformado em um viveiro de terroristas do Al Shabaab - uma facção extremista islâmica ligada à Al Qaeda– e de lá haviam saído os extremistas que mataram 147 pessoas no ataque à universidade de Garissa, em 2 de abril de 2015.

O governo passou a fazer repatriação voluntária dos refugiados, apesar da seca, do cólera e da milícia terrorista ainda estar em boa parte do território somali. Mais ou menos na mesma época, o Quênia deixou de dar status de refugiados aos somalis que cruzam a fronteira. “Anteriormente, eles recebiam automaticamente o status de refugiados, todo mundo sabia que não havia paz na Somália e que eles não vinham para cá a turismo”, diz Jean Bosco Rushatsi, chefe de operações do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) nos campos de Dadaab.

“Depois da decisão do governo de fechar os campos, ninguém mais recebeu esse status.”
Sem isso, os somalis não têm mais perspectiva de, um dia, serem reassentados em um país rico como Canadá, Austrália ou Estados Unidos.

E o pior: por não serem considerados refugiados, os somalis que chegaram em Dadaab nos últimos dois anos não recebem o pacote de assentamento, que inclui um terreno e materiais para construírem suas barracas.

Nem ganham o “ration card”, o vale-ração que dá direito a uma porção quinzenal de cereais, farinha, óleo, açúcar, sal e uma quantia para compra de vegetais e frutas.

Sem a ração quinzenal, a família de Noor tem sobrevivido à base de folhas fervidas desde que chegou, há pouco mais de um mês. Todos os dias, a filha mais velha recolhe as folhas no mato e ferve com água numa panela até que virem uma papa verde viscosa.

“É salgadinho, o gosto não é ruim”, diz Abay, a filha de 20 anos.

Quando chegou a Dadaab, Noor achou ter tirado a sorte grande. Ele encontrou um terreno com duas tendas cujos ocupantes acabavam de ser repatriados para a Somália.


Acima, a somali Subam Ali (de azul), 36, segura criança próximo 
à sua tenda em Dadaab, no Quênia; abaixo, vista aérea do 
maior campo de refugiados do mundo (Lalo de Almeida/Folhapress)
A família de dez se dividiu nas manyattas improvisadas, cujas paredes eram feitas com galhos secos de acácia, amarrados uns nos outros com tiras de saco de lixo, cobertas por lona doada por organizações humanitárias e papelão.

O mobiliário se restringia à esteira no chão. Dentro das tendas, morava um enxame inimaginável de moscas. No canto, ficava uma latrina construída por uma ONG.



Ao redor do terreno, uma cerca feita com galhos secos de acácia, cheios de espinhos, e uma infinidade de roupas velhas e trapos enroscados. As roupas velhas funcionam como espantalhos para proteger as casas das hienas. Sorrateiros, os animais rondam durante a noite e matam os bodes. Às vezes, matam os bebês.

Noor ficou feliz com a moradia herdada, mas logo descobriu que não teria direito ao vale-ração. Por um mês, a família viveu de alimentos doados por vizinhos e folhas fervidas. A maioria dos somalis é muçulmana e segue à risca os ensinamentos de Maomé de ajuda aos pobres.

Vista aérea de cerca que está sendo construída pelo governo queniano na
fronteira com a Somália; até agora, pouco mais de 5 km foram finalizados
(Lalo de Almeida/Folhapress)
Até que ele recebeu um token -um jeito que o Acnur achou de dar ao menos um pouco de comida às famílias mais necessitadas que não tinham o status de refugiados.

Noor se preparava, animado, para acordar às 4h e esperar na fila quilométrica para os armazéns mantidos pelo Programa Mundial de Alimentação. Sairia de lá com um pouco de feijão e milho.

Apesar de tudo isso, Dadaab ainda é melhor que a Somália para os Addow.

“Aqui ao menos tem água”, dizia Habiba, a filha de 13 anos, empurrando um carrinho de mão com algumas vasilhas. Eles também têm acesso a assistência médica. Salado, a filha de dois anos, está com malária e acabara de voltar do hospital. A menina franzina tem braços finos e barriga protuberante, marcas da desnutrição crônica.
  







Crianças posam para foto no vilarejo BP1, próximo à cidade queniana de
Mandera,  que faz fronteira com a Somália e onde está sendo construída
cerca (Lalo de Almeida/Folhapress)
No Quênia, os refugiados não têm autorização para trabalhar, nem para sair dos campos. Vivem de bicos.

“Minha mulher passou o dia lavando roupa para fora e ganhou um saco de arroz. Não faço nada senão esperar pelo food token”, diz Noor.

Ele diz que gostaria muito de ir para a “América”, onde há muitos somalis. Informado de que o atual presidente americano, Donald Trump, tem dificultado a entrada de refugiados, franze a testa. “Não sabia disso não.”

Noor tampouco sabia que o governo queniano está fechando os campos de refugiados.
Noor tampouco sabia que o governo queniano está fechando os campos de refugiados. “A gente acabou de chegar. Se nos mandarem voltar para a Somália, não sei o que faremos. Somos pastores e agricultores, não podemos voltar para o mato seco.”

Desde 2014, o Quênia fez a repatriação voluntária de 75 mil somalis que estavam em Dadaab. Dois dos cinco campos do complexo já fecharam.

Segundo a ONU, 6,2 milhões de pessoas na Somália precisam de ajuda humanitária atualmente. Isso corresponde a quase a metade da população. Na última grande fome, em 2011, morreram 260 mil pessoas de inanição. Muitas estão em perigo novamente.

“Eles vão fechar os campos e mandar as pessoas de volta para um país onde não existe nem atendimento médico nem escola, e há uma epidemia de cólera”, diz Liesbeth Aelbrecht, chefe da missão dos Médicos sem Fronteiras no Quênia.

A vida dos refugiados vai ficar pior ainda.
O governo queniano está construindo uma cerca de 700 km na fronteira com a Somália para restringir a entrada dos somalis. O objetivo é frear atentados terroristas da milícia islâmica Al Shabaab.

A funcionária pública queniana Saadia Kullow, 29, festeja a construção da cerca. Ela mora em Mandera, cidade de 150 mil habitantes que fica na tríplice fronteira entre Quênia, Etiópia e Somália.

A funcionária pública queniana Saadia Kullow (à dir.), 29, ao lado da filha 
Asia, 6; elas moram em Mandera, na tríplice fronteira entre Quênia, Etiópia e 
Somália (Lalo de Almeida/Folhapress)
Mandera vive sob estado de sítio há meses por causa dos ataques do Al Shabaab. Vigora um toque de recolher das 19h às 06h —quem sai na rua nesse horário é preso.

Estrangeiros são proibidos de entrar na cidade por causa da falta de segurança.

Representantes do governo e visitantes só andam acompanhados de carros com seguranças armados com metralhadoras. O último atentado foi no fim de maio. Uma bomba contra o comboio de carros onde estava o governador do condado matou cinco seguranças.

Saadia, que mora em Mandera desde que nasceu, já testemunhou cinco atentados. No último, jogaram bombas a poucos metros da casa dela. Até hoje, toda vez que passa um caminhão na rua ou há algum barulho mais alto, seu filho de dois anos e meio acorda gritando: “Mamãe, mamãe, bomba!”

Crianças se refrescam no vilarejo BP1, que fica próximo a Mandera, cidade
queniana que faz fronteira com a Etiópia e Somália (Lalo de Almeida/Folhapress)
“Sempre tem tensão, nunca sabemos quando eles vão atacar. Mas eles vão. Por isso vai ser ótimo esse muro.”

Hoje, a fronteira é porosa, e os traficantes de armas, contrabandistas de açúcar e extremistas se aproveitam.

Centenas de pessoas cruzam da Somália para o Quênia todos os dias para trabalhar, ver parentes, buscar pastos mais verdes para os animais. Se dão azar de encontrar um policial no caminho, os somalis sabem que basta pagar propina de uns 50 xelins quenianos (cerca de R$ 1,65) para passar.

As obras da cerca começaram em 2014, mas, por ora apenas 5,3 km foram construídos.
Mesmo isso já atrapalha.

No povoado de BP1 (de Border Point 1, por ser o primeiro ponto desta que é uma das mais voláteis fronteiras do mundo), os pastores de cabras não podem mais atravessar facilmente para a Somália em busca de pastos verdes, cada vez mais raros.

A maioria das crianças somalis estuda no Quênia, porque não há muitas escolas funcionando na Somália. Antes, bastava cruzar a fronteira. Agora, elas precisam andar 12 quilômetros na ida e 12 na volta para contornar a cerca e chegar à escola.

“Esta fronteira é artificial, nossa comunidade é uma só: mesma língua, mesmo povo, mesma religião”, diz o chefe da aldeia BP1, Mohammad Salat. No norte do Quênia, a população é etnicamente somali e é muçulmana, ao contrário da maioria dos quenianos, que é cristã. Até 1925, essa área era parte da região somali de Jubaland.

Segundo Fredrick Shisia, comissário do condado de Mandera, o propósito da cerca não é dividir somalis e quenianos, é evitar a entrada de terroristas. O Al Shabaab costuma atacar cristãos e funcionários do governo, soldados ou policiais quenianos.

Tropas do Quênia estão na Somália desde 2011 combatendo o Al Shabaab.

Shisia admite que a cerca dificultará a entrada dos refugiados somalis. “Mas a Somália está bem mais estável, estamos incentivando os somalis a voltarem para casa, pois ninguém reconstruirá o país se eles não voltarem.”






Abay, 20, filha de Noor Adow, recolhe folhas e cozinha em frente à sua tenda
no campo de refugiados de Dadaab, no Quênia (Lalo de Almeida/Folhapress)


E, de qualquer forma, “esse número enorme de refugiados é um fardo para nossa economia”, diz o comissário. “Se para a Europa é difícil, imagine para a gente?”

Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, onde os governos também ergueram muros para estancar o fluxo de refugiados, o Quênia não é um país rico.

A Somália tem a menor renda per capita do mundo: US$ 400, ou cerca de R$ 1.300, por ano.

No Quênia, a renda é mais de oito vezes a dos somalis. Ainda assim, o país fica em 185º de 230 países. Seus US$ 3.400 anuais por pessoa correspondem a 25% da renda anual per capita brasileira.

Soldado do exército queniano observa área que faz fronteira com a Somália;
cerca separa os dois países (Lalo de Almeida/Folhapress)
No condado de Mandera, a taxa de analfabetismo é de 75%. Não existe estrada asfaltada. Mais de metade das crianças está desnutrida. Há apenas um médico para cada 114 mil habitantes.

“Em vez de criticar o fechamento dos campos e a construção da cerca, a comunidade internacional deveria entender que Dadaab se transformou num covil de terroristas”, diz Harun Kamal, vice-comissário do condado de Garissa, onde fica Dadaab. ” Os países ricos deveriam se oferecer para receber 5 ou 10 mil refugiados somalis.”

Texto: Patricia Campos Mello / Imagens: Lalo de Almeida / Infografia: Marcelo Pliger e Simon Ducroquet/ Edição de vídeo: Victor Parolin /Edição de fotografia: Daigo Oliva / Edição de texto: Luciana Coelho / Pesquisa: Renan Marra / Tratamento de fotografia: Edson Sales / Design e desenvolvimento: Irapuan Campos, Angelo Dias, Rogério Pilker, Rubens Alencar e Thiago Almeida / Coordenação de arte: Kleber Bonjoan e Thea Severino / Coordenação geral: José Henrique Mariante e Roberto Dias / Idealização: Lalo de Almeida e Patricia Campos Mello

Nenhum comentário: