
Se me perguntarem, diria que é uma preocupação quase pueril,
esta de envelhecer. Estamos longe de estarmos velhos, dizem meus amigos
nascidos no alvorecer dos anos 1980, quando o país era governado por um
militar, o mundo era dividido por um muro e a internet era ainda peça de ficção
científica. Mas estamos longe de sermos novos, respondo, sem saber exatamente o
que isto significa.
Digo isto sem qualquer crise ou ranço, embora tenham sido
ridículas todas as minhas incursões aos lugares frequentados no fim da
adolescência. Um amigo é quem costuma se queixar: tenho saudade de quando bebia
e acordava no dia seguinte de ressaca; pois hoje, se bebo na véspera, acordo
pela manhã doente. Faz sentido.
A verdade é que algumas desculpas usadas em anos anteriores
já não funcionam mais. Não li Proust quando estava na faculdade. Não li dois
terços do Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. Não voltei sequer ao Grande
Sertão: Veredas, como prometi aos 19 anos, entre o encantado e o desentendido.
Meu inglês só definha: quanto mais leio, menos entendo, menos vontade tenho de
me concentrar. E aquela viagem ao exterior para aprender tudo na marra? Ficou
pra depois, e depois para depois, e agora também pra depois. Aos 32, posso
olhar para meu livro de contos, escrito dez anos antes, com um grande trunfo:
eu era jovem, os erros eram perdoáveis e os acertos, louváveis. Mas é no mínimo
desconfortável concluir que dez anos no lombo não me levariam a fazer melhor -
a diferença é que as justificativas começam a minguar.
Na profissão, tinha uma lista de personalidades que
entrevistaria, desbravaria, tiraria todas as intimidades do âmago para
construir novas interpretações da história, do mundo particular e dos mundos
universais. Alguns da lista já morreram e outros se calaram. A bem da verdade,
não quero mais entrevistar ninguém nem quebrar a linha de segurança entre meu
pescoço e a história.
Entre tantos projetos deixados para depois, nada é mais
desolador do que notar: na próxima Copa do Mundo estarei perto dos 36 anos.
Muitos disputaram o Mundial com esta idade - mas geralmente não em sua estreia.
E tiveram mais tempo do que para se preparar. Eu tenho apenas quatro anos e
ainda não saí das categorias de base - o que me leva a concluir que se os
empresários seguirem dormindo no ponto, a seleção brasileira e eu brincaremos
seriamente com os destinos: jamais nos encontraremos. Não me tornar jogador
profissional será uma péssima forma de me preparar para os 40.
Com tanto a fazer, e tanta coisa deixada para depois, não me
estranha que esta seja a fase das ansiedades mais agudas. O tempo se encurta, o
fôlego se comprime e as desculpas se dissolvem. Ou melhor: se transmutam. Fugir
de Proust era fichinha quando tínhamos todo tempo do mundo a favor. Agora o que
nos resta é um intervalo entre o banho depois do trabalho e o relógio a apontar
as dez da noite, que desce como um porrete todas as noites e me leva para cama
mais cedo, na esperança de que no dia seguinte estaremos descansados, com a
cabeça arejada e que o tempo, mano velho, será amigo.
Mas é nos sonhos que a coisa se complica. Na casa dos 30,
passo os dias fugindo das perguntas fundamentais, sobretudo se eu passei de
ano, raspando ou com folga, nas provas da profissão, das crônicas, das leituras
atrasadas, das amizades, do casamento, da paternidade. Era bom ter uma nota ao
fim do bimestre como referência: hoje o boletim em vermelho vem em forma de
cartas de demissão, de negação ou de despedida. "Hoje não posso".
"Talvez amanhã". "Está tarde"; "Amanhã todas as
oportunidades estarão a nosso favor". "Haverá tempo para sorver o
tempo". "Quem sabe teremos 20 anos de novo e poderemos enveredar pela
noite sem acordar doente no dia seguinte". Enquanto isso, me afogo na
tentativa descabida de dar conta de tudo, o que explica minha mochila forrada
de livros e papeis velhos, e minha ânsia em acompanhar os jovens do bairro nas
incursões pelas quadras de futebol. (Semana passada, cheguei ao abuso de jogar
no domingo, na terça, na quinta e no sábado. No domingo estava com a panturrilha
estourada e um orgulho estufado no peito: Yes, we can. Ao que a noção do
ridículo responde: "we quem, cara pálida?")
Driblar a consciência com as tarefas do dia é fácil; o duro
é dormir em paz. Dia desses, sonhei que estava numa casa de praia quando recebia
um alerta de tsunami. Tinha mais ou menos uma hora para deixar o local, e
simplesmente não conseguia porque voltava para trás toda hora para buscar algo,
da carteira ao carregador de celular, passando pelo álbum da Copa, que não sei
por que diabos carregava comigo. Acordo pela manhã rindo de tudo, driblando
tudo, até chegar, de novo, a hora de dormir. Acordo aos pulos porque, desta
vez, sonhei que estava numa velha estação ferroviária em Araraquara para
mostrar o trem para meu filho, de um ano e meio. No meio-fio da plataforma, ele
encuca de levantar do carrinho (que já não usa mais) para mexer na janela do
vagão. Foi quando o trem, vazio, velho e empoeirado, começou a andar, e a
soltar fagulhas de ferro e fogo crispadas na lâmina do trilho.
Quanto mais o trem corria, mais força o meu filho fazia para
se soltar do carrinho e dos meus braços. Enquanto o segurava para afastá-lo do
perigo, ele criava músculos, barba e argumentos, e eu já não sabia se quem eu
segurava era o meu filho ou o meu pai.
Se fosse fazer qualquer balanço do que é ter 32 anos em 2014
esta imagem seria a mais fidedigna: uma confusão frequente de papeis. Lembra da
faixa segura entre meu pescoço e a história, aquele carro velho e empoleirado
em disparada? Pois ela me lembra o tempo todo que sonhos sonhos são, mas é bom
não desprezá-los.
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