São Paulo - “Tempus fugit”. Portanto, “carpe diem”. O tempo
voa. Então, colhamos o dia. Vivamos o momento, pois envelhecer é só canseira e
enfado. É como a luz do crepúsculo, que vai se transformando rápida e
melancolicamente, até o mergulho final na escuridão da noite. O pior da
velhice, entretanto, é que as pessoas passam a nos tratar por diminutivos, como
fazem com as crianças. “Você está doentinho?” “Quer um docinho?” É humilhante.
Essas
imagens sobre o envelhecer são descritas pelo escritor, psicanalista e teólogo
Rubem Alves em seu livro “Pimentas - Para Provocar Um Incêndio Não É Preciso
Fogo” (Planeta), no qual trata dessa “fase crepuscular” da vida com poesia,
ironia e melancolia. São 74 fragmentos sobre temas variados — educação,
política, poesia, céu e inferno e passagens curiosas do Antigo Testamento — de
um autor que completou 79 anos em setembro.
Ele
soa um pouco triste ao telefone, falando da varanda de seu apartamento, na
cidade de Campinas. “O tempo me foge. Não tenho mais tempo para
escrever um romance. Não tenho mais tempo para escrever uma coisa com começo,
meio e fim. ‘Pimentas’ é uma coleção de fragmentos - sou um retratista. Outra
palavra que revela idade.”
Leia
abaixo a entrevista na íntegra.
Valor: O
senhor conta no livro um episódio engraçado sobre um “flerte” no metrô que não
terminou como gostaria. Como foi isso?
Rubem Alves: Eu
descobri que estava velho numa situação surpreendente. Isso foi há vinte anos.
Estava em São Paulo, peguei o metrô, estava lotado. Eu era jovem, pernas
fortes, segurei no balaústre e comecei a olhar para os rostos das pessoas.
Rostos contam histórias. Olhando para as pessoas você pode imaginar contos,
muitas coisas. Eu estava ali, imaginando as crônicas que poderia escrever,
quando vi uma moça me olhando com mansidão, quase com ternura. Eu fiquei
comovido com aquele olhar. Eu olhava para ela, ela olhava para mim. Percebi que
ela devia estar comovida com a minha presença. Houve um momento de suspensão
romântica. Pensei: manchete do meu conto — ‘Rubem Alves encontra
inesperadamente no metrô o grande amor de sua vida’. Comecei a ter fantasias.
Foi nesse momento que ela me fez um gesto de carinho. Ela se levantou e me
ofereceu o lugar. Quando ela fez isso, é como se dissesse para mim: o senhor
(certamente ela estava pensando em senhor, não em você) não pertence ao meu
mundo. O senhor deve ter pernas bambas. Naquele instante eu percebi que estava
perto dela, mas estava muito longe dela. Ela era uma moça e eu era um velho. A
partir dali o tema da velhice começou a ser importante para mim. Comecei a
prestar atenção no que acontece com as pessoas quando elas se descobrem velhas.
Fiz então uma série de observações sobre isso.
Valor: Cite
algumas.
Alves: A
gente é velho quando as moças nos oferecem lugar no metrô. A gente é velho
quando uma moça lhe dá o braço para ajudar a subir a escada e você tem que
aceitar a delicadeza. Eu agora tenho que ter cuidado, tenho que olhar pro chão
e medir os meus passos. Coisas que eram naturais - andar, subir escada, descer
escada - coisas simples passam a não ser mais.
Valor: Mas o
senhor não está se concentrando muito no aspecto físico do envelhecimento?
Alves: É,
mas o olhar das pessoas também muda.
Valor: O que
muda nesse olhar?
Alves: Você
deixa de ser o homem másculo, viril, objeto de contemplação das jovens, e passa
a ser um ser crepuscular. O que é o crepúsculo? Nele, o tempo passa muito mais
rápido. Neste instante, eu estou sentado aqui na minha varanda, o céu está
muito azul, o tempo está parado. Assim é a juventude — na juventude, o tempo
para. Mas quando chega o crepúsculo, começa a haver transformações rápidas no
céu. Rapidamente, as cores vão se alterando, o azul fica verde, o verde fica
amarelo, amarelo fica abóbora, abóbora fica vermelho, o sol está se pondo, tudo
fica roxo e logo o céu está mergulhado na escuridão. A percepção é que a hora
de partir está chegando. O crepúsculo é essa consciência de que o tempo passa
rapidamente, a vida passa rapidamente.
Valor: O
senhor cita numa das crônicas o livro de Eclesiastes, quando fala do envelhecer
como os anos nos quais o homem não encontra mais prazer nenhum.
Alves: Sim,
a gente descobre que o tempo é curto. Aqui na minha varanda tem duas frases que
mandei gravar em madeira - Tempus Fugit. Se o tempo foge, eu preciso correr.
Então mandei gravar Carpe Diem, colha o dia. Viva o momento. Mas isso dá uma
tristeza na gente.
Valor: Envelhecer
também não é sobre perder a capacidade de sonhar? A sua escrita, contudo,
revela uma pessoa que não perdeu essa capacidade. Que sonhos o senhor tem
cultivado?
Alves: Tem
uma frase de Fernando Pessoa que diz assim - Deus quer, o homem sonha, a obra
nasce. Talvez essa pressa em produzir tenha a ver com essa sensação de que os
dias passam muito rapidamente . Comecei a ler esses dias um livro enorme de
John dos Passos, um livro monumental. Eu não tenho mais tempo para escrever
livros enormes. O tempo me foge. Não tenho mais tempo para escrever um romance.
Não tenho mais tempo para escrever uma coisa com começo, meio e fim. “Pimentas”
é uma coleção de fragmentos - sou um retratista. Olha aí, eu já disse uma
palavra que revela a idade. Jovem não fala retrato, fala foto. Eu tenho que
escrever rápido porque não sei quando é que vou partir.
Valor: O
senhor parece cansado.
Alves: Uma
das coisas da velhice é o cansaço. Dá uma canseira de viver, sabe? Deus quer, o
homem sonha, a obra nasce. Mas a gente não tem mais disposição para fazer a
obra nascer. A gente tem que agarrar o que resta. Gosto de contar a história de
um homem que ia caminhando pela floresta, a mata estava escura. De repente, ele
ouve o rugido de um leão e sai correndo, mas como está escuro ele cai num
precipício. Ele se agarra a um galho preso no abismo, olha para cima, o leão,
para baixo, o abismo; então ele nota que bem à sua frente está brotando um
galho com uma fruta vermelha. É um morango. Ele estende o braço e come o
morango e se delicia. As pessoas perguntam - qual o final da história? O homem
caiu? E eu respondo, não tem final, é só isso mesmo. Você não entendeu? Quem
está pendurado sobre o abismo sou eu, é você , todos estamos sobre o abismo,
portanto, o que nos resta a fazer é comer os morangos.
Valor: E
quais são os morangos que o senhor tem apreciado atualmente?
Alves: São
coisas pequenas, simples. Ontem, por exemplo, ouvi pela internet a Pour Elise,
de Beethoven, tocada num órgão feito de taças de cristal, um som inesperado,
que vai surgindo aos poucos. Qual é a importância disso? Nenhuma! Mas me feliz
naquele momento.
Valor: Na
realidade, não deveríamos viver sempre desse jeito, ter essa capacidade de
tirar alegria de coisas pequenas?
Alves: O
Guimarães Rosa tem uma frase verdadeira: alegria, só em raros momentos de
distração. Agora, a felicidade aqui da minha varanda é ver os ipês, que
teimam em florescer. Para florescer eles têm que perder todas as folhas. Árvore
pelada, na cabeça da gente, está se preparando para morrer. Mas em vez de
morrer o que os ipês fazem? Eles florescem. No livro conto a história de uma escola
que organizou uma exposição de desenhos dos alunos sobre coisas que escrevi. A
professora perguntou para as crianças: quem é Rubem Alves? E uma menina
respondeu: Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos. Isso é muito
comovente.
Valor: Algumas
crônicas falam sobre educação, de uma maneira crítica, e da proximidade entre
velhos e crianças. “As crianças nos salvam de um envelhecimento triste.”
Alves: Os
avós estão mais próximos dos netos que os pais. Os pais ficam preocupados em
colocar o filho em escola forte, para passar no maldito vestibular. É uma perda
de tempo isso, as escolas não ensinam a sabedoria da vida, e os avós não têm
tanto essa preocupação com desempenho. A alma dos velhos é muito parecida com a
alma das crianças.
Valor: Nos
fragmentos, o senhor fala também sobre céu e inferno. Uma frase que me chamou a
atenção é: “É inimaginável que um Deus de amor castigue com sofrimentos eternos
pecados que foram cometidos no tempo”. Qual a sua ideia de inferno?
Alves: São
Tomás de Aquino tem uma frase horrenda que diz que “Deus e os salvos
contemplam, dos céus, os condenados, dos estertores da sua agonia, para que sua
alegria se cumpra”. Quem foi que criou o inferno? Não foi o diabo. Se Deus é
onipotente, então o inferno é produto da vontade de Deus, Eu já acreditei
nisso, sabe? Já perdi o sono por causa disso. Quem tem muitas vinganças a
realizar faz mosaicos de infernos, diz o [filósofo Gaston] Bachelard. Deus não
tem vingança nenhuma a realizar. Se é que Deus existe. Deus não pune nada, vai
punir o quê? Um pobre mortal que foi enrolado pelas artimanhas da estupidez
humana? Acreditar que o universo tem essa dimensão de vingança? Deus não está
se vingando de seus desafetos. Além disso, os pecados humanos são cometidos no
tempo — por uma pessoa que vai viver setenta, oitenta anos. E o inferno é por
toda a eternidade, é para sempre. Se eu fosse Deus mandaria um castigo para
todas as pessoas que pensaram essas coisas horríveis de mim. O mesmo castigo
que aconteceu entre o povo de Israel e os filisteus lá no Velho Testamento. Ele
castigou com uma praga terrível — todos os filisteus ficaram tomados de
hemorróidas. Numa região que não tinha nem um riachinho onde pudessem se
refrescar.
Valor: O
senhor cita esse e outros episódios muito esquisitos do Antigo Testamento. Um
deles é sobre o profeta Eliseu, amigo de Elias.
Alves: O que
tem de maluquice no Velho Testamento, de maldade... O profeta Eliseu era
discípulo de Elias. Eliseu era vaidoso e tinha muita raiva por ser
careca. Mas ele era muito poderoso. Um dia, Eliseu estava caminhando pela
estrada e vinham em sua direção 42 crianças, que começaram a rir dele. Sabe o
que ele fez? Ele invocou o poder de Jeová, que fez sair do mato duas ursas que
devoraram as crianças. E o profeta, sem se comover com isso, simplesmente
continuou a sua caminhada. Não fez nada para defendê-las. Tá lá na Bíblia.
Valor: É
difícil convencer as pessoas que o Deus do Antigo Testamento é o mesmo do Novo
Testamento?
Alves: Ah,
eu não tento mais convencer ninguém de nada. As pessoas acreditam no que querem
acreditar. As mudanças vêm de dentro, quando alguma coisa começa a operar
dentro da gente e a gente começa a perceber os absurdos. Tem que separar o
trigo do joio. Na Bíblia tem coisas lindas - o Senhor é meu pastor, nada me
faltará, conduz-me por águas tranquilas.. Ainda que eu ande pelo vale da
sombra da morte não temerei mal algum porque tu estás comigo ...
Valor: Pura
poesia.
Alves: Poesia.
Veja o que aconteceu bem agora. Aqui na minha varanda, acabo de ouvir um
barulho. Olhei e vi que tinha entrado uma cigarra pela janela. Você sabe que as
cigarras são seres subterrâneos, elas vivem nas raízes das árvores. Elas não
veem nada. Mas há um momento em que alguma coisa diz para esses seres
subterrâneos: cigarra, está na hora de se transformar num ser alado. Então elas
saem da terra, sobem o tronco das árvores, tiram a casca dura que as envolve e
ganham asas. Daí elas cantam, cantam, cantam. Cantam para quê? Para celebrar o
amor, para chamar os machos. Depois de realizar o amor, elas esperam a morte.
Valor: Por
que razão o senhor terminou um livro tão poético com um assunto tão árido
quanto a diabetes?
Alves: Para
chamar a atenção dos diabéticos para o fato de que eles e eu estamos pendurados
sobre o abismo e vai chegar a nossa hora. E por isso a gente precisa tomar
cuidado, a menos que você queira morrer. Para dizer às pessoas que vivam bem.
Cuidem da vida, não vão comer bombom, porque bombom é bom, mas melhor é ficar
vivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário