quarta-feira, 13 de junho de 2012

Mostra expõe luzes e sombras de Bergman

Ciclo com filmes de Ingmar Bergman (em foto de 1957), em cartaz no
CCBB-SP, permite que o espectador vá além do lugar-comum
Tão fortes são a porção obscura e o impulso corrosivo de seus personagens que Ingmar Bergman, diretor sueco morto em 2007, aos 89 anos, passou para a história da arte do século XX como se, no correr de sua vida, jamais tivesse visto o sol.

Mas, apesar de ter construído sua obra essencialmente com a luz da lua, Bergman não foi só sombra e tormento. Não mesmo. E a possibilidade de espiar as frestas de leveza e graça é uma dentre as muitas razões para se celebrar a Mostra Ingmar Bergman, que começa amanhã e se estende até 15 de julho no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo.

A mostra, que passou pelo Rio de Janeiro e seguirá para Brasília a partir de 19/6, reúne 51 títulos - todos os longas-metragens, obras feitas para a TV e documentários, como o essencial "A Ilha de Bergman" - capazes de nos fazer enxergar um Ingmar Bergman que o lugar-comum acostumou-se a ignorar.

Seu apetite para o risco e o visceral fizeram com que até mesmo artistas elaborados, e duros, como Marguerite Duras (1914-1996), o tachassem de pretensioso e inacessível. Cabe dizer, ainda, que o próprio Bergman, com suas declarações e escritos, alimentou a imagem de homem complexo e difícil.

"Claro que, como muitos artistas, ele era uma pessoa complexa. Mas havia também algo de promocional nisso", afirma Jan Holmberg, presidente da Fundação Bergman, sediada em Estocolmo. "Ele não era apenas soturno e triste. Filmes como 'Sorrisos de uma Noite de Verão' são absolutamente divertidos, e eu diria até que existe um forte senso de humor mesmo nos filmes supostamente mais pesados."

É impossível não sorrir ao ouvir, por exemplo, um dos personagens de "O Sétimo Selo" (1957), agarrado, de maneira patética, à copa de uma árvore, perguntando à morte se não existe um perdão especial para atores. Isso sem falar nas comédias propriamente ditas, que São Paulo, enfim, poderá ver. "Apesar de, cinco anos após a morte de Bergman, e décadas depois do seu auge artístico, ter começado a haver um interesse maior por sua obra, não são comuns retrospectivas amplas como essa", diz Holmberg.
É possível ver humor até em filmes mais densos do diretor sueco, como
"O Sétimo Selo" (1957)
Para que se compreenda não só esse interesse renovado como a própria natureza de sua criação é preciso voltar os olhos para a Suécia do início do século XX, quando o mundo saía da Primeira Guerra Mundial, mas ainda não tinha sido esfacelado pela Segunda Guerra - momento em que Bergman começa a filmar.

Nascido em um lar luterano, de princípios rígidos e pouco afeito ao riso, Bergman viveu, ao menos em sua memória, uma infância marcada por castigos severos e afetos contidos. A natureza escandinava, que só em uns poucos períodos do ano é generosa em luz, tampouco pode ser desprezada em sua constituição psíquica. Trata-se, afinal de contas, da mesma geografia que forjou o filósofo dinamarquês Kierkegaard (1813-1855), o pintor norueguês Edvard Munch (1863 - 1944) ou o cineasta dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968).

A despeito da paixão pelo cinema ter nascido na infância, Bergman, antes de dar início à direção cinematográfica, escreveu peças e romances e, sobretudo, dirigiu grupos de teatro. O primeiro contato com o cinema se daria em 1944, como roteirista de "Tortura de um Desejo", do conterrâneo Alf Sjöberg (1903 - 1980).

No ano seguinte, estrearia como diretor com "Crise", que acompanha os percalços de uma menina disputada pela mãe verdadeira e pela adotiva. Na primeira sequência do filme, a voz em off avisa o público: "Eu não definiria esta narrativa como uma história grande e angustiante. É, na verdade, apenas um drama cotidiano. Quase uma comédia". Ele indicava, ali, que o aspecto cômico da vida não lhe escapava.

A graça da protagonista de "Crise", que carrega um sopro de liberdade e ousadia juvenil em meio à angústia, seria expandida nos personagens da comédia "Sorrisos de uma Noite de Amor" (1955), definido pela crítica Pauline Kael (1919-2001) como uma obra quase perfeita.

Dessa fase, que Pauline chamou de rosa, há filmes menores, como a comédia "O Olho do Diabo" (1960), que mostra o diabo, "em pessoa", ressuscitando dom Juan, e também pequenas obras-primas, como "Monica e o Desejo" (1953). Neste, acompanhamos as aventuras de Harry e Monica, dois adolescentes movidos por impulsos de desejo, convictos de que o amor tem o poder de parar o resto do mundo.
Em "Gritos e Sussurros" (1972), são as expressões e gestos 
quase imperceptíveis das atrizes que guiam o filme
"Todos os filmes de Bergman são declarações de amor à idade de ouro da juventude. A juventude dos seres humanos, a juventude do pensamento, a juventude da arte", escreve JMG Le Clezio, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em "Ballaciner", reunião de escritos cinematográficos. "É como se só a memória das coisas boas pudesse nos salvar do vazio da morte", completa o escritor, referindo-se ao reencontro de Isak Borg, protagonista de "Morangos Silvestres" (1957), com as vozes suaves de sua adolescência.

Tão importante para sua obra quanto a busca pela jovialidade perdida é a presença das mulheres. Apesar de, na vida, ter tido dificuldades para manter relações estáveis - teve cinco casamentos e nove filhos -, em seus filmes são quase sempre as mulheres, interpretadas por Harriet Anderson, Bibi Anderson ou Liv Ullman, que têm razão.

"Todas as mulheres me impressionam: velhas, jovens, altas, baixas, gordas, magras, grosseiras, pesadas, leves, bonitas, atraentes, desengonçadas, vivas ou mortas", escreveu, na autobiografia "A Lanterna Mágica". "O mundo das mulheres é o meu universo. Eu talvez evolua mal dentro dele, mas não há nenhum homem que possa se gabar de fazê-lo inteiramente bem."

A despeito dos aspectos comuns a todos os filmes, Bergman teve uma carreira marcada por fases. E é importante ter isso em mente quando se vai ver um filme dele. Se em "Juventude" (1973) os diálogos são essenciais e em "A Flauta Mágica" (1975) o que nos guia é a música de Mozart, em "Gritos e Sussurros" (1972) o que importa é o rosto humano - são as expressões e os gestos quase imperceptíveis que falam, não as vozes.

É esse mundo diverso que a mostra do CCBB embalou para nosso consumo. "Ele trabalhava em um ritmo frenético", pontua o curador Giscard Luccas, justificando a vastidão de títulos. "Só na década de 1950, ele produziu 13 filmes. Entre 1956 e 1957, dirigiu 'Morangos Silvestres' e 'O Sétimo Selo', e encenou, nos palcos, 'Gata em Teto de Zinco Quente', 'Erik XIV' e 'Peer Gynt'."

Quem for à retrospectiva no CCBB vai descobrir que suas produções, mais ou menos como os grandes livros, tendem a se entregar pouco a pouco ao público. Mas, como escreveu o também cineasta François Truffaut (1932-1984), em 1954, os filmes de Bergman têm um caráter essencial e, por isso, "todos aqueles que nasceram e estão vivos são capazes de compreendê-los apreciá-los".

Mostra Ingmar Bergman

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo - rua Álvares Penteado, 112, Centro, tel. (11) 3113-3651/52. De ter. a dom., das 9h às 21h; R$ 4; de 13/6 a 15/7. Programação completa em www.bb.com.br/cultura

Por Ana Paula Sousa, para o Valor Econômico, São Paulo

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