domingo, 15 de abril de 2012

Fernando Pessoa e Os Jograis

A recepção da obra do grande poeta português Fernando Pessoa (1988-1935) em nosso país foi precoce e calorosa, apesar de póstuma. Logo cuidariam de sua divulgação os mais influentes críticos e confrades. Mas uma popularização inesperada para um poeta de alta cultura viria de um suporte também inesperado: uma trupe de declamação chamada Os Jograis. Como a trupe se inseria na São Paulo de então é o que examinaremos a seguir.

A acanhada cidade, na década de 1950, quando mal chegava aos 3 milhões de almas, tinha um centro urbano onde tudo se passava. No plano das artes, são os anos de iniciativas admiráveis como a Vera Cruz e o Teatro Brasileiro de Comédia. A primeira era uma companhia de cinema que produziu filmes da maior relevância, tirando o cinema brasileiro do amadorismo e do aleatório. O Teatro Brasileiro de Comédia, ou TBC, levou a arte a um nível de profissionalismo e ampliação de repertório, que assentaria as bases do teatro moderno em nossas terras.

No centro da cidade ficavam a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Arquitetura e a Faculdade de Economia, todas da USP, bem como a Escola de Sociologia e Política, mais o sistema educacional secundário e universitário do Mackenzie, acrescido pelo Colégio Rio Branco e pela Escola Normal Caetano de Campos. Nas adjacências, livrarias sofisticadas como a Pioneira, a Duas Cidades, a Jaraguá, a Partenon, a Francesa.

Só depois de 1968 esse harmonioso complexo de urbanismo metropolitano seria detonado, pulverizando-se e dispersando seus cacos pelo resto da cidade, quando não os aniquilando. Desde então São Paulo ficou policêntrica - com pequenos focos parciais distribuídos pelos bairros -, enquanto seu cerne entrava em derrocada, esvaziava-se de seus habitantes e tomava o rumo da marginalidade, destino comum à "inner city" nas Américas. Após um tempo de abandono, ainda recalcitra ante os esforços para revitalizá-lo, em toda a imponência de sua arquitetura.

A malha urbana era constituída por uma grande concentração cultural por metro quadrado. Ali se erguiam então como hoje o Teatro Municipal, o Teatro de Cultura Artística e a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, de visitação diária, sobretudo para os "adoradores da estátua", que se reuniam ao pé de Minerva no saguão. Em não mais que uma dúzia de quarteirões ficavam ainda o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, afetuosamente chamado de Clubinho, a Biblioteca Infantil, o Teatro Leopoldo Fróis e a Aliança Francesa.

E, afora o Museu de Arte Moderna na 7 de Abril, com seu bar e uma ativíssima Filmoteca, como então se chamava a futura Cinemateca, oferecia uma constelação de majestosas salas de cinema, nenhuma com capacidade abaixo de mil assentos. Eram elas o Art Palácio, com mais de 3 mil, construído por um reputado arquiteto da época, Rino Lévi; afora o Marabá, o Ipiranga, o Normandie, o República, o Metro, entre outros. O Marrocos sediou o festival internacional de cinema do IV Centenário de São Paulo, em 1954, quando ali pousaram não só a mundanidade de uma delegação do "star system" hollywoodiano para embasbacar os circunstantes, mas também monumentos da sétima arte como Erich von Stroheim, Abel Gance, Henri Langlois, André Bazin.

De Stroheim viu-se uma retrospectiva de filmes mudos. Também do cinema mudo e um de seus maiores diretores era Abel Gance, que trouxe "Napoléon", clássico aqui exibido atendendo a todas as suas exigências de vários projetores. Henri Langlois foi o criador da Cinemathèque Française e seu diretor: mais tarde, sua demissão sumária pelo governo seria o estopim do Maio de 68 em Paris. Por sua vez, André Bazin até hoje é considerado o maior crítico que o cinema já teve. Esse era o modesto naipe que veio prestigiar o festival.

Em apenas uma dúzia de quarteirões se desdobrava o perímetro mais efervescente da urbe. No coração do perímetro lá estava o novíssimo Teatro de Arena, de José Renato, tendo ao lado o bar Redondo, sempre cheio. Foi nesse teatro que Os Jograis estrearam e permaneceram em longa temporada com o "Recital Fernando Pessoa".

O novo grupo estreou a 16 de maio de 1955. Quem declamava era um quarteto masculino de atores do TBC, reconhecível pelo estilo da dicção, que se apresentava de smoking. O líder, Ruy Affonso - cuja amizade com Cecília Meireles, diligente divulgadora do poeta português, seria decisiva para essa escolha inaugural -, mantinha-se fixo, revezando-se com maior ou menor frequência os demais membros. 

Pagu foi um dos fãs que assistiriam ao espetáculo e escreveriam a respeito.

Seu êxito foi imediato e estrondoso, e quando no ano seguinte excursionaram ao Rio, precedidos da reputação paulistana, se apresentaram num palco de prestígio, o do Ministério da Educação. Primeiro edifício público modernista, assinado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, foi cantado em verso e prosa tanto por cronistas quanto por poetas. O edifício era a concretização arquitetônica dos novos padrões estéticos, enquanto Brasília, a ser inaugurada em 1960, mal se delineava no horizonte. Na estreia da temporada carioca, 2 mil pessoas comprimiam-se no auditório de 800 lugares.

Logo Os Jograis gravariam o disco "Fernando Pessoa" (1957), tão disputado que exigiria sucessivas tiragens. Contribuiriam para a língua portuguesa se não com um neologismo, pelo menos com um deslocamento semântico. Procuravam com modéstia identificar-se a artistas ambulantes como os saltimbancos e trovadores. Todavia, passaram a ser imitados em tudo quanto é festinha de escola e de paróquia, "fazer um jogral" tornando-se sinônimo de qualquer declamação coletiva. O novo significado não alcançou o "Dicionário Aurélio", mas, com a data de entrada no léxico português devidamente registrada, já figura no "Houaiss". Nesse sentido, inédito até então, é ainda hoje utilizado.

E deflagrou outros usos, ao batizar a boate Jogral, do compositor Luiz Carlos Paraná, que abria as portas na Galeria Metrópole, no quarteirão atrás da Biblioteca Municipal onde também ficavam o Paribar, o Barbazul e o Arpège. Depois se transferiria para a rua Avanhandava. Atrairia intelectuais e artistas, como Marcus Pereira e Paulo Vanzolini, que lá cantava informalmente.

Na sequência, Os Jograis fariam espetáculos de declamação dedicados a outros poetas. Realizaram 1.200 recitais com 35 diferentes programas, em turnês por todo o Brasil, Portugal, Angola e México. Em terras lusas, apresentaram-se no Teatro D. Maria II a convite do governo português, com tal sucesso que acabariam por cobrir todo o país com 40 shows, em 1957, operando também lá em prol da popularização de Fernando Pessoa.

Tempos depois, o espólio de Ruy Affonso seria adquirido por Alex Ribeiro. O arquivo carinhosamente preservado é bem completo na documentação de Os Jograis, constando de seu site a foto de cada programa, ali esmiuçado, acrescentando-se o histórico e os discos.

Valor Econômico - Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP. Autora de livros sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, crítica literária e cultural. Seu último livro é "Sombras & Sons" (2011)

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