Finalmente saiu no Brasil uma história em quadrinhos que não é só uma obra-prima de desenho e argumento, mas também uma peça de arte que foi capaz de prenunciar, ainda nos anos 1950, todo o desastre autoritário que asfixiaria o continente sul-americano, em especial a Argentina, onde nasceu "O Eternauta", um clássico ainda hoje influente e poderoso, de iconografia tão forte no país quanto as imagens de Che Guevara.
O homem que imaginou tudo isso foi Héctor Germán Oesterheld (1919-1978?). O parceiro que deu corpo à imaginação desse roteirista foi o compatriota Francisco Solano López (1928-2011), homônimo do ditador paraguaio. "Sempre fui fascinado pela história de Robinson Crusoé", escreveu Oesterheld. "Ganhei o livro quando era muito pequeno e o devo ter lido mais de 20 vezes. De início, 'O Eternauta' foi a minha versão do Robinson. A solidão do homem cercado não mais pelo mar, mas pela morte. Também não mais o homem solitário que é Robinson Crusoé, mas o homem com família, com amigos."
Esse homem é o viajante do tempo, o Eternauta, que aporta no escritório de um roteirista de quadrinhos - um autorretrato assumido mais claramente ao longo de duas versões que se seguiram, já nas décadas de 60 e 70 - e lhe conta como enfrentou uma invasão alienígena com a ajuda dos amigos e de um exército guerrilheiro formado por sobreviventes de uma catástrofe. A história contada pelo Eternauta começa no chalé aquecido de um confortável bairro portenho, onde quatro amigos jogam truco. Lá fora, neva. A neve, tóxica, destrói os seres que toca. Caberá a esses amigos reunidos em torno do truco salvar a cidade e talvez o mundo.
Oesterheld e Solano López não queriam escrever uma história fantástica de marcianos invasores. Juntos, decidiram partir para o real. Nunca antes uma história em quadrinhos do continente havia misturado de maneira tão crível elementos dispersos de ficção científica e de realidade. A casa cercada de morte ficava num bairro conhecido, numa rua conhecida de Buenos Aires. E os combates entre a milícia popular e os alienígenas ocorrerão, por exemplo, nos subterrâneos do metrô e nas cercanias do estádio do River Plate. Esse choque de realidade, bem como os maravilhosos desenhos de Solano, capturaram o leitor logo na primeira temporada. "O Eternauta" foi publicado primeiro em série, de 1957 a 1959, voltando nas décadas posteriores. As tiras terminavam com um pequeno suspense, que apontava para os capítulos seguintes.
Os leitores argentinos ficaram enfeitiçados, quanto mais por um detalhe que não escapou de ninguém: a qualidade literária do texto. Oesterheld era um bom escritor de narrativas curtas antes de roteirizar quadrinhos. Segundo a lenda que cerca seu nome, teria conhecido Jorge Luis Borges, com quem costumava dividir longas caminhadas pelas noites do bairro de Palermo.
"O Eternauta" é um clássico porque mantém o vigor realista, próximo do cotidiano. A cineasta Lucrecia Martel (de "A Menina Santa") tentou adaptar o livro para o cinema transportando-o para o nosso tempo, mas deu errado - os herdeiros de Oesterheld não concordaram com o roteiro. Há um teste de efeitos para o filme na internet em que aparecem os estranhos e mortais flocos de neve, bem como naves espaciais atravessando o Rio da Prata na direção dos arranha-céus de Buenos Aires. Por enquanto, o mais famoso quadrinho argentino permanece no papel.
Aliás, não só no papel. Uma das figuras mais grafitadas na cidade é a do Eternauta, vestido com sua fantasia improvisada de mergulhador futurista. A presidente Cristina Kirchner usou o desenho nas últimas eleições (dentro da máscara, aparecia a cara do marido morto, imediatamente apelidado de "Nestornauta"). "O quadrinho repercute até hoje na memória do país, inclusive no cenário político. O governo federal chegou a incluir a obra numa lista de livros essenciais para compor acervos de bibliotecas escolares", conta o professor e jornalista Paulo Ramos, autor do livro-reportagem "Bienvenido - Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos". Ramos é um devoto da criação de Oesterheld e Solano López. "Na minha leitura, está entre os 20 melhores quadrinhos já produzidos. 'O Eternauta' antecipou as narrativas em quadrinhos mais longas, voltadas aos leitores adultos, como 'Maus' [Art Spiegelman] e 'Persépolis' [Marjane Satrapi]. Credita-se à Europa o pioneirismo de tais produções. A Argentina já fazia isso na década de 1950."
O desenhista gaúcho Guazzelli também é fã dos quadrinhos argentinos. "O Eternauta", para ele, está no topo. "Minha terra natal tem uma forte relação com os países do Prata e, por causa disso, desde cedo entrei em contato com a escola de quadrinhos e artes gráficas daquela região. Os autores argentinos realizaram algo fantástico ao associar aventura com temáticas e uma estrutura dramática sofisticada. E 'O Eternauta' é o paradigma máximo dessa operação. Com ele, toquei o nirvana da linguagem", diz.
Guazzelli conheceu pessoalmente Solano López e Alberto Breccia, argentino de origem uruguaia que desenhou com Oesterheld não só uma continuação de "O Eternauta" como também as tiras de outro marco do quadrinho portenho, o impressionante "Che: Os Últimos Dias de um Herói" (que a editora Conrad já lançou no Brasil). "Solano viveu vários anos exilado no Rio - se ficasse na Argentina, teria sido assassinado - e dizem que desenhava a paisagem de Buenos Aires de memória, com perfeição. Com o velho Breccia passei uma tarde em seu estúdio", conta Guazzelli.
Oesterheld teve um destino horripilante. Na década de 60, aderiu ao grupo guerrilheiro Montoneros. Suas quatro filhas fizeram o mesmo. No começo dos anos 60, estava na clandestinidade, entregando secretamente os roteiros de "O Eternauta". Foi capturado em 1977, no auge do terror espalhado pela ditadura militar. Passou por várias celas dos aparatos de repressão, que eram conhecidas com nomes eufemísticos como "Sheraton". Foi torturado. Obrigaram-no a escrever uma história de San Martín, o herói nacional (reconheciam que a sua versão do Che era de fato fabulosa).
Oesterheld ganhou algum tempo, mas viveu ainda o suplício de ver as fotografias das quatro filhas mortas. Ao todo, nove pessoas da família foram eliminadas: duas das mulheres estavam grávidas e um dos netos do escritor foi levado até ele no cárcere, antes de ser devolvido à avó. Oesterheld foi dado como desaparecido a partir de 1978. "O Eternauta", que estranhamente antevia a tragédia dos desaparecidos do continente, continua por aí, assombrando as paredes de uma Buenos Aires cada vez mais sombria.
Por Cadão Volpato | Para o Valor, de São Paulo
"O Eternauta".
Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López. Trad.: Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. Martins Fontes, 360 págs., R$ 69,80
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