sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Uma epidemia de gente que incomoda

Interessado em escapar do exame de geografia, Antônio Carlos Malheiros aceitou de bate-pronto a proposta do professor de visitar uma favela na zona sul de São Paulo. Do relato dessa visita o professor colheria a nota. Aluno de uma escola de classe média alta, Malheiros tinha 13 anos quando se deparou com uma jovem da mesma idade, grávida de um dos irmãos numa casa fétida onde uma mãe se consumia por um câncer. Passou de ano. E nunca mais deixou de trabalhar com populações em situação de risco.

Hoje desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Malheiros já viu de tudo. Estudante de direito na USP, formou com colegas um grupo que dava assistência jurídica a favelados. Já advogado, passou a integrar a Comissão de Justiça e Paz e organizações não governamentais que contam histórias a crianças com Aids em hospitais públicos. Na magistratura, aproximou-se da Vara da Infância e Juventude.

Nesses 47 anos desde que pisou pela primeira vez numa favela, Malheiros diz que nunca viu uma situação tão limite quanto aquela em que vivem duas mil pessoas no pedaço do centro de São Paulo conhecido como cracolândia.

Numa distância de menos de cem metros é possível sair da Sala São Paulo, que abriga os melhores espetáculos musicais da cidade, e ingressar no que Malheiros compara a um campo de refugiados de país africano em guerra civil.
Há uma semana o desembargador fez a primeira audiência no local. 

Acompanhado de promotor de justiça e de defensor público, instalou-se numa casa cedida pela prefeitura e abriu os portões para jovens levados pelos religiosos que atuam na região. Foi a primeira de uma série de audiências, que devem se tornar rotina, para garantir vaga em hospitais públicos a quem quer se tratar e impedir internação compulsória sem laudo psiquiátrico que a recomende, como manda lei federal.

Diz que não vai permitir que São Paulo siga o exemplo do Rio, mas ainda não conseguiu um único centavo do governo do Estado para dar regularidade às audiências de rua. 

Desde maio, o choque de ordem do prefeito do Rio, Eduardo Paes, determina que crianças e adolescentes sejam recolhidos compulsoriamente das cracolândias da cidade. 

Os defensores da medida argumentam que um jovem viciado não tem discernimento para decidir sobre seu destino e que cabe ao poder público zelar por sua vida internando-o. A corrente a que se filia Malheiros defende que não há tratamento bem-sucedido se o viciado não quiser se tratar. E que o tratamento ambulatorial, aberto, com substituição gradativa de drogas pesadas por outras mais leves até a desintoxicação, como é praxe na maior parte dos países europeus, funciona melhor que a internação em hospitais fechados, modelo disseminado nos Estados Unidos.

Malheiros aplaudiu o programa de combate ao crack anunciado nesta semana pela presidente Dilma Rousseff, ainda que tema a orientação que cada prefeito dará à ampliação de vagas no SUS e em entidades privadas para o tratamento de usuários. 

Relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia com a vistoria em 68 instituições de internação para usuários de drogas, em 24 Estados, registrou casos de castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência inconstitucional de exames como o do HIV, desrespeito à orientação sexual e revista vexatória de familiares.

O melhor do plano, diz Malheiros, é a instalação de consultórios de rua em municípios com mais de 100 mil habitantes. É este, precisamente, o ponto que mais desagradou o lobby que quer facilitar a internação hospitalar involuntária de drogados. O deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS) é um dos mais ativos parlamentares em defesa dessa compulsoriedade.

Se os consultórios de rua agradaram a linha dos que temem o recolhimento de usuários, a afirmação do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, de que o Brasil vive uma epidemia de crack lhes causou apreensão. Um tratamento epidêmico implica num atendimento em massa. E não se massifica o atendimento ao usuário de droga tendo que pedir autorização judicial para cada internação que se pretenda fazer.

Foi o temor dessa massificação que levou a secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Paulina Duarte, a negar que o país vivesse uma epidemia de crack. O fato de apenas seis meses depois ter sido desmentida pelo ministro apenas confirma o embate de visões que hoje predomina não apenas na sociedade sobre o tema, mas no próprio governo. 

A proximidade das eleições municipais e de eventos como a Copa do Mundo e a Olimpíada favorece a que se limpe as ruas dessa gente que incomoda. Nos Jogos Pan-Americanos do Rio o governo federal lançou um programa para financiar o albergamento de crianças e adolescentes de rua com duração limitada ao período do evento. 

Na campanha municipal os proponentes de medidas higienistas terão na ascensão da classe C mais um estímulo ao discurso quem-prospera-quer-ordem.
Em São Paulo, apesar de acompanhar um debate cada vez mais intenso sobre o recolhimento compulsório de usuários, Malheiros diz que a medida efetivamente ainda não foi posta em curso.

Muitas noites o desembargador tira o terno e a gravata, põe a camisa para fora da calça e deixa o fórum em direção ao quadrilátero de ruas do centro de São Paulo infestado pelo crack. A principal delas chama-se Helvétia. Na suíça paulistana as janelas dos prédios comerciais abandonados são fechadas com tijolos para evitar invasões. Mas os noias quebram as paredes e lá se instalam.

Malheiros sente-se culpado pela cracolândia, mas sabe que é cada vez mais difícil coletivizar a culpa. Talvez seja natural que quem paga impostos se veja no direito de ver a cidade livre dos noias, mas não está claro se o eleitor se importa em saber como isso pode ser feito. A partir desse debate, que tende a ganhar força com a proximidade da campanha, se poderá concluir se a utopia coletiva que restou é a cidade limpa para seu usufruto.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
E-mail mcristina.fernandes@valor.com.br

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