segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O poder de viver na verdade

A maior carência do mundo não é de petróleo, água limpa ou alimentos, mas de liderança moral. Ao assumir um compromisso com a verdade - científica, ética e pessoal - uma sociedade pode superar muitas crises de pobreza, doença, fome e instabilidade que nos confrontam. Mas o poder abomina a verdade e a combate implacavelmente. Assim, façamos uma pausa para expressar gratidão a Václav Havel, que morreu neste mês, por permitir que uma geração conquistasse a oportunidade de viver na verdade.

Havel foi um líder fundamental dos movimentos revolucionários que culminaram em liberdade na Europa Oriental e, 20 anos atrás, neste mês, no fim da União Soviética. As peças, ensaios e cartas de Havel descreveram o embate moral no empenho de viver honestamente sob ditaduras comunistas da Europa do Leste. Ele arriscou tudo para viver na verdade, como ele caracterizava sua vida - honesto consigo e heroicamente honesto em face do poder autoritário que reprimiu a sociedade e esmagou a liberdade de centenas de milhões.

À medida que as pessoas que estão no comando destroem o ambiente, iniciam guerras, fomentam a agitação social e ignoram o sofrimento dos pobres, parecem desconhecer que elas próprias e seus filhos pagarão um preço pesado.

Ele pagou caro por essa escolha, passando vários anos na prisão e outros mais sob vigilância, perseguição e censura a seus textos. Apesar de tudo, o fulgor da verdade se disseminou. Havel deu esperança, coragem e ousadia a uma geração de seus compatriotas. Quando a teia de mentiras entrou em colapso em novembro de 1989, centenas de milhares de tchecos e eslovacos saíram às ruas para proclamar sua liberdade - e conduzir o dramaturgo proibido e preso ao Castelo de Praga como recém-eleito presidente da Tchecoslováquia.

Eu, pessoalmente, testemunhei o poder de viver na verdade, naquele ano, quando a liderança do movimento Solidariedade, da Polônia, pediu-me que ajudasse na transição para a democracia e para a economia de mercado. Eu conheci e fui profundamente inspirado por muita gente na região que, como Havel, viveu na verdade: Adam Michnik, Jacek Kuron, Bronislaw Geremek, Gregorsz Lindeberg, Jan Smolar, Irena Grosfeld e, claro, Lech Walesa. Esses bravos homens e mulheres, e aqueles que, como Tadeusz Mazowiecki e Leszek Balcerowicz, que comandaram a Polônia tiveram êxito graças à combinação de coragem, inteligência e integridade.

O poder de dizer a verdade naquele ano criou uma sensação deslumbrante de possibilidades, pois provou a reversão de um das mais recalcitrantes hegemonias na história: a dominação soviética sobre a Europa Oriental. Michnik, como Havel, irradiava a alegria da verdade sem medo. Perguntei-lhe, em julho de 1989, quando o regime comunista polonês já estava se esgarçando, quando a liberdade chegaria a Praga. Ele respondeu: "Até o fim do ano". "Como você sabe?" indaguei. "Acabei de me encontrar com Havel nas montanhas", disse ele. "Não tenha medo. A liberdade está a caminho." Sua previsão estava certa, é claro, com um mês de antecedência.

  
Assim como mentiras e corrupção são contagiosas, também a verdade moral se dissemina de um paladino a outro. Havel e Michnik puderam ter sucesso em parte por causa do milagre de Mikhail Gorbachev, o líder soviético que surgiu de um sistema envenenado, mas valorizava a verdade acima da força. E Gorbachev pode triunfar em parte devido ao puro poder da honestidade do seu compatriota, Andrei Sakharov, o grande e destemido físico nuclear que também arriscou tudo para falar a verdade no império soviético - e que por isso pagou com anos de exílio interno.

A vida de Havel é um lembrete dos milagres que tal credo pode produzir, mas é também um lembrete do fato mais sombrio de que as vitórias da verdade nunca são definitivas. Cada geração precisa adaptar suas bases morais às condições constantemente cambiantes das mudança políticas, culturais, sociais e tecnológicas.

A morte de Havel acontece num momento de grandes manifestações na Rússia em protesto contra fraudes eleitorais, violência no Egito quando ativistas democráticos combatem militares profundamente enraizados no poder; revolta na China rural contra funcionários locais corruptos; e tropas de choque policiais desmantelando violentamente reuniões de protesto do movimento "Ocupar" nas cidades americanas.
Grande parte da luta, hoje - em toda parte - opõe a verdade à ganância. Mesmo que nossos desafios sejam diferentes dos enfrentados por Havel, a importância de viver na verdade não mudou.

A realidade contemporânea é de um mundo em que a riqueza se traduz em poder e em que o poder é usado para aumentar a riqueza pessoal às custas dos pobres e do ambiente natural. À medida que as pessoas que estão no poder destroem o ambiente, iniciam guerras sob falsos pretextos, fomentam a agitação social e ignoram o sofrimento dos pobres, parecem ignorar que elas próprias e seus filhos pagarão um preço pesado.

Muitas pessoas hoje desesperam-se quanto às possibilidades de mudança construtiva. No entanto, as batalhas com que nos defrontamos - contra poderosos interesses empresariais, implacáveis distorções de fatos por firmas de relações públicas e as mentiras incessantes de nossos governos - são uma sombra do que Havel, Michnik, Sakharov e outros enfrentaram ao se opor aos brutais regimes apoiados pelos soviéticos.

Em contraste com estes dissidentes titãs, temos à nossa disposição os instrumentos das mídias sociais para disseminar a mensagem, superar o isolamento e mobilizar milhões em apoio a reformas e renovação. Muitos de nós desfrutamos de proteções mínimas à liberdade de expressão e de reunião, ainda que duramente conquistadas, imperfeitas e frágeis. Porém, da mais profunda importância e consequência, também somos abençoados pela inspiração permanente da vida de Havel na verdade.  (Tradução de Sergio Blum)

Jeffrey D, Sachs é professor de economia e diretor do Instituto Terra, na Columbia University. Ele também é Assessor Especial do Secretário-Geral da ONU para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

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