segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Religião e diversidade étnica

Por Daniela Fernandes | Para o Valor, de Paris
 
Influências da crise atual sobre os modos de pensar e agir de quem vive na Europa devem permear os trabalhos de uma conferência internacional que se realizará na Universidade de Tilburg, na Holanda, no fim de novembro. No encontro, em que se discutirão "Os Valores da Europa", objeto de acompanhamento sistemático do European Values Study (EVS), personalidades acadêmicas de vários países tratarão de dois temas, entre outros, que se associam de forma muito particular e atual como campo de análise antropológica: a religião e a diversidade étnica (também serão apresentados "papers" sobre família e casamento, trabalho e lazer, política e sociedade).

Cristãos e muçulmanos - estes, uma população encorpada por correntes migratórias incessantes - são os personagens de um ambiente sociocultural ao qual a crise agora acrescenta novos ângulos de observação.

Mudanças nos padrões de vida das populações europeias, por exemplo, têm exercido influência direta no declínio do número de cristãos no continente. A diminuição da população rural no século passado é um dos fatores que contribuíram para a ruptura da transmissão dos valores religiosos, já que no campo o sentimento de pertencer a um grupo relativamente homogêneo, com os mesmos valores, é mais forte.

"Nas cidades, as pessoas não conhecem o vizinho, os filhos vão estudar longe de casa e se distanciam dos moldes tradicionais. Esse tipo de comportamento fragiliza a transmissão da fé", analisa o sociólogo de religiões Frédéric Lenoir, autor dos livros "Sócrates, Jesus, Buda" e "O Oráculo de Luna", publicados no Brasil, e diretor da revista "Le Monde des Religions", do jornal "Le Monde". "O discernimento pessoal e um olhar mais crítico nos levam a questionar fundamentos da fé e as explicações religiosas do mundo."

A progressão do individualismo é outro fator que explica a diminuição da prática religiosa cristã. Os avanços sociais conquistados nas últimas décadas na Europa levaram as pessoas a se inserir cada vez menos em grupos - e também a pensar que seu sucesso pessoal e profissional não depende mais de Deus.

A prática do islamismo tende a diminuir na Europa, pelos mesmos motivos. A melhora da qualidade de vida dos imigrantes muçulmanos e da geração nascida no continente - comparada à que teriam em seus países de origem - vem tornando essas pessoas mais individualistas, e também mais materialistas, com as mesmas aspirações típicas da sociedade ocidental.

"O surgimento de uma classe média muçulmana na Europa, fenômeno que quase nunca é comentado, transforma a cultura dos imigrantes", afirma o cientista político Olivier Roy, professor do European University Institute, de Florença, na Itália. Nas periferias pobres, porém, a situação não mudou. "Em bairros de Amsterdã, na Holanda, ou em Marselha, no sul da França, as pessoas vivem como se estivessem na Casbah", diz Roy, referindo-se ao centro histórico de cidades árabes do Norte da África.

Segundo pesquisa do Instituto Ifop sobre o islamismo na França, divulgada em julho pelo jornal católico francês "La Croix" - o país tem a maior população muçulmana da Europa - os fiéis dessa religião estão mais presentes nas classes populares (33% são operários). E 62% têm entre 18 e 34 anos, mas apenas 23% nessa faixa etária costumam frequentar a mesquita às sextas-feiras, dia tradicional de orações. No geral, um quarto dos muçulmanos vai à mesquita pelo menos uma vez por semana, enquanto do lado católico apenas 5% vão à igreja pelo menos uma vez por mês.

Cenas de devoção ao papa ou de milhares de jovens presentes no evento do Dia Mundial da Juventude da Igreja Católica não escondem a diminuição de fiéis no continente. "Eles são cada vez mais praticantes e engajados e também se tornam mais visíveis, mas representam uma minoria. E o objetivo é rivalizar com a maior visibilidade do Islã", afirma Lenoir.

"Para a igreja, o critério que define a adesão total é a fé. O papa é contra o chamado cristianismo social, ou seja, as pessoas dizem ser cristãs, mas não aderem na prática aos conceitos", explica Roy. "As religiões hoje se afirmam como uma comunidade de fé. Os que creem buscam cada vez mais afirmar suas crenças. É a mesma coisa em relação aos muçulmanos."

Estudo de uma equipe de sociólogos do EVS mostra que, em 1999, havia 62,1% de católicos e 25,8% de protestantes no continente. Em 2008, data do último relatório, registrou-se queda vertical nas proporções, para 36,7% e 14,5%, respectivamente. Entre os franceses, eram 70% os que se diziam católicos em 1981, e não mais que 43% em 2008. No Reino Unido, os protestantes passaram de 56,6% para 38,7% e os católicos, de 13,6% para 10,8%. Na Alemanha, os protestantes caíram de 34,5% para 27%, e o número de católicos permaneceu praticamente inalterado, em torno de 22%.

E há os que se declaram sem religião: na França, aumentaram de 27% para 50%; no Reino Unido, passaram de 15% para 32,9%; na Alemanha, foram de 39,6% para 46,1%.

A forte diminuição do número de fiéis católicos na França tornou-se um grande problema para as contas da igreja, que não recebe subvenções do Estado. Para enfrentar a queda de doações, recorre-se à alienação do patrimônio imobiliário.

Se a venda de igrejas ainda não é comum, o mesmo não ocorre com conventos, monastérios e propriedades doadas por particulares no passado. Em fevereiro, uma luxuosíssima residência com ares de castelo no bairro dos Invalides, em Paris, que pertencia à Congregação das Filhas do Coração de Maria, foi vendida à família real do Bahrein por €66 milhões, um recorde na capital francesa. O Vaticano supervisionou a operação.

Em paróquias mais simples, que não dispõem de tais propriedades, a solução é vender a igreja mesmo: a da pequena cidade de Vandoeuvre-les-Nancy, no Leste da França, foi vendida por €1,3 milhão e se tornará um centro comercial. "Só uma centena de fiéis frequentavam a igreja, que tem capacidade para mais de 700 pessoas", justificou a diocese de Nancy.

A Conferência dos Bispos da França não publica cifras sobre transações imobiliárias. "Só vendemos as propriedades de que não precisamos mais. Isso nos permite, por exemplo, construir uma catedral. Não é para encher o caixa da igreja", diz Jean-Louis Posté, consultor financeiro da instituição.

Há religiosos, no entanto, que são mais diretos. No ano passado, a diocese de Nancy lançou uma campanha para atrair doações com o slogan "Doe, que diabo!" ("Donnez, que diable!").

Além da queda das doações de fiéis, a redução do número de padres na França, provocada pelo declínio da vocação religiosa, aumenta as despesas da igreja, com a contratação de funcionários para fazer serviços administrativos.

Do lado muçulmano ocorre o contrário. Eles são atualmente 44 milhões (6% da população europeia), depois de um aumento de 14,5 milhões de 1990 a 2010, de acordo com o Pew Research Center. Nos próximos 20 anos, a previsão é de que a Europa terá 8% de fiéis dessa religião, com novo aumento de 14 milhões.

A comunidade muçulmana francesa é a maior da Europa: a estimativa é de que sejam 5 milhões de pessoas, ou cerca de 8% da população (estatísticas oficiais étnicas ou religiosas são proibidas no país desde o fim da Segunda Guerra). Mas a questão da maior visibilidade do Islã, ligada ao aumento da imigração, está longe de se limitar às fronteiras francesas. O assunto movimenta cada vez mais o debate público em toda a Europa.

O crescimento dessa população muçulmana, que em muitos casos reivindica locais de reza, comida halal nas cantinas escolares ou piscinas exclusivas para mulheres, vem criando um fenômeno de rejeição na sociedade europeia, com aumento de ataques contra mesquitas e atos racistas contra pessoas de origem árabe, suspeitas de associação com o terrorismo.

"Sou insultada todos os dias porque uso o niqab nas ruas. Sou chamada de lixo, terrorista e me dizem para voltar para o Afeganistão", diz Hind Ahmas, que é francesa, como seus pais, e prefere não respeitar a lei "porque renegaria minha fé". Na França, 36 atos criminosos contra instituições muçulmanas, principalmente locais de culto, foram cometidos no ano passado. Isso corresponde a um aumento de 71%, de acordo com estatísticas do Coletivo contra Islamofobia na França.

"A triste verdade é que o preconceito contra muçulmanos é amplamente difundido na Europa hoje e não apenas pela internet. Pesquisas de opinião efetuadas em vários países europeus transmitem a mesma mensagem: medo, desconfiança, visão negativa dos muçulmanos e da cultura islâmica", diz Thomas Hammarberg, comissário de direitos humanos da assembleia parlamentar do Conselho da Europa.

Na Alemanha, que registra uma forte imigração turca e reúne a segunda maior comunidade muçulmana da Europa, apenas 45% têm opinião favorável em relação aos fiéis dessa religião, segundo pesquisa do Pew Research Center divulgada em julho. Na Espanha, a aprovação é ainda menor, de somente 37%. Na França, na Alemanha, na Espanha e no Reino Unido, a maioria diz que as relações entre ocidentais e muçulmanos são "ruins".

Mas os partidos de extrema-direita não são os únicos a tentar tirar proveito dessas pesquisas de opinião que demonstram aversão ao Islã. Governos e partidos de outras partes do espectro político também têm surfado na onda dessa intolerância crescente. O ministro francês do Interior, Claude Guéant, provocou polêmica ao declarar que "o aumento do número de fiéis muçulmanos e certos comportamentos provocam problemas".

A França é o primeiro país europeu onde a lei contra o uso do véu integral islâmico entrou em vigor, mas a Bélgica já aprovou essa legislação e na Holanda (onde o governo já deu o sinal verde), Itália, Dinamarca e Áustria estuda-se a adoção de iniciativas desse tipo. Na Holanda, já não é mais possível abater animais segundo rituais religiosos. A Suíça proibiu, por referendo, a construção de minaretes nas mesquitas. O governo alemão se opôs à criação de escolas exclusivas para turcos no país, alegando que isso não faria avançar as coisas em termos de integração.

A chanceler Angela Merkel deu o tom do debate sobre imigração e Islã ao admitir, no ano passado, o "fracasso total" das políticas visando criar uma sociedade multicultural na Alemanha. Ela enterrou o modelo de coexistência de populações com origens culturais diferentes e defendeu uma real integração, a começar pela língua. "Nós nos sentimos ligados aos valores cristãos. Os que não aceitam isso não têm lugar aqui", afirmou. Mas acabou contemporizando, admitindo que, sim, o Islã tem seu espaço na Alemanha.

Após Merkel, foi a vez do primeiro-ministro britânico, David Cameron, reconhecer no início deste ano que o multiculturalismo também fracassou em seu país, afirmando que isso criou sociedades paralelas. "A Europa precisa acordar e olhar o que acontece em suas fronteiras", disse.

Na França, o multiculturalismo não é aplicado formalmente, o que não impediu o presidente Nicolas Sarkozy de concordar com as declarações de Merkel e Cameron. "Em nossas democracias, nos preocupávamos com a identidade de quem estava chegando e não suficientemente com a do país. Se alguém vem à França, tem de aceitar participação em uma só comunidade."

O massacre cometido em julho na Noruega pelo extremista Anders Behring Breivik, que matou 77 pessoas, aumentou a gravidade das ameaças ligadas à islamofobia. Lidar com o aumento da intolerância e combater extremismos são desafios para todos os governos europeus. "A tendência dos políticos é privilegiar a integração dos muçulmanos e evitar choques culturais muito fortes", diz Lenoir.

Segundo o sociólogo, quanto mais os jovens muçulmanos têm acesso à educação e ganham melhores condições sociais, menor é a importância que emprestam à religião. "Estamos em um cruzamento. Há resistências de minorias religiosas comunitaristas de um lado e, do outro, populações e governos europeus que defendem uma sociedade laica. É uma queda de braço. Ainda não sabemos qual será o resultado", afirma.

Lenoir diz que muçulmanos mais cultos têm uma visão mais moderna e crítica do Islã, como ocorre com outras religiões, o que já não acontece no caso de pessoas socialmente desfavorecidas. Ele afirma ter constatado, nos últimos dez anos, que o aumento de leis e críticas visando a comunidade islâmica contribui para reforçar cada vez mais o sentimento de identidade muçulmana entre as pessoas excluídas socialmente, que tendem a buscar refúgio na religião.

Para Olivier Roy, a integração da comunidade muçulmana na Europa já está em andamento, com o surgimento de uma classe média de profissionais liberais, além de casamentos mistos e jovens que se distanciam do comportamento religioso de seus pais.
"As garotas que se recusam a casar com pretendentes impostos pelos pais já representam um sinal de integração", diz Roy. Iniciativas como redes de fast-food com hambúrgueres halal também são vistas por ele como exemplo de adaptação do Islã ao modo de vida ocidental.

O número de muçulmanos deverá continuar aumentando na Europa em razão da necessidade de mão de obra, já apontada em pesquisas internacionais. O ex-primeiro-ministro italiano Massimo d'Alema, presidente da Fundação Europeia de Estudos Progressistas, afirma que a Europa precisaria receber 30 milhões de imigrantes nos próximos 30 anos, para manter o equilíbrio entre a população ativa e a aposentada. "Esses dados mostram como é urgente voltar a considerar os imigrantes como um trunfo e não como um perigo", alerta.

Kenza Drider é a "candidata de niqab" às eleições presidenciais francesas em 2012. A lei que proíbe o uso do véu islâmico que cobre o rosto, mesmo parcialmente, em qualquer espaço público, entrou em vigor em abril na França. Mas Kenza, que pretende revogar a legislação caso seja eleita, continua a usá-lo.

E foi apenas com os olhos à mostra que a francesa de origem marroquina anunciou, no dia 22, sua candidatura "para lutar por todas as mulheres vítimas de discriminação", comparando seu combate ao realizado por Marie Olympe de Gouges, figura emblemática de movimentos para a liberação das mulheres na Revolução Francesa, e de Rosa Parks, ícone da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos nos anos 1950. "Como o país dos direitos humanos, de Rousseau e Voltaire, decide obrigar mulheres a ficarem presas em suas casas porque têm convicções religiosas diferentes?", questiona Kenza - que provavelmente encontrará dificuldades para reunir as 500 assinaturas necessárias de prefeitos e deputados para disputar as eleições.

O anúncio de sua candidatura foi feito no mesmo dia em que a Justiça francesa condenou, pela primeira vez desde a entrada em vigor da lei, duas muçulmanas ao pagamento de multas por uso do véu integral. "Vivo como qualquer mulher. A única diferença é a minha escolha de vestimenta", disse Hind Ahmas, 32 anos, divorciada e mãe de uma menina de quatro anos, que teve de pagar uma multa de €120. "O governo francês criou essa lei por razões eleitorais, para desviar a atenção em relação aos problemas econômicos do país e para que o Islã seja menos vísivel na França", disse ela, que também continua usando o niqab.

Na França, questões ligadas ao Islã estão regularmente nas páginas dos jornais. Desde 15 de setembro não é mais permitido rezar nas ruas de Paris, medida tomada para lidar sobretudo com o problema em um bairro no norte da cidade, onde milhares de fiéis, alegando a falta de mesquitas, ocupavam o espaço público para fazer suas orações. Após muita polêmica, um antigo quartel de bombeiros foi cedido para orações, mediante pagamento de aluguel.




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