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Maria Schneider em "O Último Tango em Paris": atriz ficou marcada o resto da vida pela cena mais famosa do filme, pela nudez, pela violência |
Em 1972, numa festa na casa de Brigitte Bardot, um jovem diretor italiano de carreira incerta e talento indiscutível, Bernardo Bertolucci, viu a moçoila misteriosa e impactante e resolveu, de chofre, convidá-la para seu novo filme, "Ultimo Tango a Parigi", assim mesmo, em italiano. Ela pediu o roteiro e decidiu recusar. Sua agente foi direta: "Como, menina, dizer não a um papel ao lado de Marlon Brando? Enlouqueceu?" Depois do filme, o que enlouqueceu foi a sua vida.
Marlon Brando tinha 48 anos, um Oscar, era brilhante, mas sua carreira estava praticamente encerrada. Havia virado um trambolho problemático que os estúdios de Hollywood evitavam a qualquer custo, vinha de um formidável histórico de fracassos de bilheteria e de turbilhões de problemas em cada filmagem.
Maria Schneider tinha 19 anos e era de uma beleza surpreendente, com um ar de inocência pecaminosa. Estava longe de ser dessas belezas certinhas, medidinhas. Tinha um rosto atrevido, um olhar assustado, dessa classe de ser humano que quando é surpreendido se lança para a frente em vez de recuar, que ao sentir a força do incompreensível se joga ao encontro dessa força, não foge. Abria seus imensos olhos marejados de enigma e susto - os olhos que congelaram Bertolucci e disseram que o papel da jovem Jeanne em "Último Tango" seria dela ou de ninguém.
Enfim: Maria era uma moça que a gente, com sorte, poderia ver passando na rua, com sua beleza ousada e humana, real, palpável. Não era de gelo, não parecia perfeitamente esculpida em cera ou em plástico.
Tinha um corpo esguio e desengonçado, os seios demasiado grandes para sua estrutura frágil, os quadris estreitos, como se todo o resto tivesse crescido, menos os quadris. Enfim, um corpo real, jovem, atrevidamente jovem. E se mostrava sem peias, sem medos, com uma naturalidade assustadora, que, por isso mesmo, assombrava: afinal, em 1972 o mundo era outro. Hoje, parece balela. Mas foi uma sacudida inquietante.
Maria tinha 19 anos e no filme mostrava uma vontade irremediável de experimentar de tudo, de viver até a última gota, surgia como quem tinha a ousadia dos frágeis que não se sabem frágeis. O grande personagem, o herói dramático da história, é Marlon Brando. Sua atuação foi tão formidável que Maria ficou relegada ao papel da nudez, da oferta desembestada, das cenas de sexo desenfreado.
Mas, no filme, ela foi muito mais do que isso. Muito mais.
Anos mais tarde, Maria disse que, quando foi trabalhar com o italiano estranho e o americano imprevisível, era virgem. Exalava uma sensualidade avassaladora, uma liberdade - uma liberalidade - sem tréguas nem limites. Mas era virgem. E virgem continuou por todas, todas as cenas. Menos na alma. Na alma, não.
O resultado foi um dos filmes mais autorais da história, uma interpretação soberana de Marlon Brando e a revelação de uma atriz indecifrável, inqualificável e, para manter a rima, formidável.
Foi sua consagração, foi sua destruição. Para que não faltassem reconhecimentos ao seu talento e à força da sua presença, depois de "Último Tango" ela recebeu convites de grandes diretores. Um deles veio do mestre italiano Michelangelo Antonioni.
Em 1975, aos 22 anos - 22! -, ela apareceu ao lado de outro ícone, o então jovem e sempre diabólico Jack Nicholson, com seu sorriso de gelo e sua atuação precisa, em "Profissão: Repórter", de Antonioni. Maria continuava formidavelmente jovem, com um frescor desconcertante, mas já não era a menina de "O Último Tango". Continuo achando que estava mais amargurada, mais marcada - e mais bela.
Só que sua vida já tinha perdido o rumo. Jack Nicholson contou, anos mais tarde, que em muitos dos dias de filmagens precisou segurar Maria para que ela não desmoronasse, vítima de doses cavalares de analgésicos, que tomava exatamente para isso mesmo: não sentir as dores da vida.
É que sua vida já se encaminhava para um fracasso de dimensões olímpicas. Cocaína, heroína e qualquer coisa bebível eram sua dieta cotidiana. Amores devassos, amores desencontrados, homens e mulheres que se sucediam e se misturavam numa procissão veloz, estilhaçavam sua vida.
Ela recusou o convite de Bertolucci para o filme, mas sua agente esbravejou: "Como dizer não a um papel ao lado de Brando? Enlouqueceu?"
Ainda assim, surgiam convites importantes, que, por uma ou outra razão, acabavam não dando certo. Na rajada de desvarios, surgiu o convite que poderia ter sido redentor, de um espanhol genial e insaciável em sua arte, Luis Buñuel. Em 1977, ela foi escolhida para "Esse Obscuro Objeto do Desejo". Havia uma cena em que deveria aparecer nua. Maria, aos berros, se recusou. A redenção virou perdição: ela acabou tendo a estranha e rara glória de ser expulsa das filmagens por Luis Buñuel em pessoa.
Tinha 25 anos e uma vida esfacelada. Continuou trabalhando, mas a maioria das propostas era para fazer o papel de moça devassa. Como, aliás, devassa tinha se tornado sua vida.
E veio a sucessão de entradas e saídas em clínicas psiquiátricas, em clínicas para drogados, e os escândalos de amores escandalosos, e a paixão pela herdeira da locadora de automóveis Avis, uma americana chamada Joan Townsend. Uma paixão violenta, que acabou numa clínica psiquiátrica de Roma, e aí foram meses de internação. Vieram participações secundárias em filmes, veio sua etapa de militante do feminismo exacerbado, veio sua militância lésbica, veio de tudo, mas a vida, aquela vida luminosa que se anunciou num determinado dia de 1972, quando Maria foi convidada para trabalhar com um diretor de talento indiscutível e com um deus da arte de interpretar, bem, essa vida nunca veio.
E tudo isso por causa de uma cena, da filmagem de um único dia. Um take, um único take. Exatamente a cena que fez de "Último Tango" notícia eterna: Maria, deitada de bruços no chão, sendo sodomizada por Marlon Brando. A cena da manteiga, que, para ela, foi a cena da humilhação extrema, o começo do começo do fim.
"Último Tango em Paris" é um filme soberbo sobre a solidão, as impossibilidades do possível, sobre a debilidade e a fortaleza do amor. A maioria das cenas foi improvisada por Marlon Brando. Há uma fala insuperável, quando Paul - o personagem dele - se despede do cadáver de Rose, sua mulher suicida. A fala dura muitos, infinitos minutos, e foi, toda ela, improvisada. Um brilho só.
Maria volta e meia era surpreendida pelos improvisos de seu parceiro de cena, e seu ar de autêntica surpresa - afinal, sem roteiro respeitado, também era obrigada a improvisar - é uma das marcas mais perenes de "O Último Tango".
A mais brutal, a mais insólita das cenas improvisadas, porém, foi a que acabou com ela: a da manteiga. A que marcou o filme, a que destroçou Maria. A cena não estava no roteiro, foi inventada na hora por Marlon Brando.
"É só um filme", ele disse a Maria. Que, no filme, chora - um choro verdadeiro, um choro de dolorida humilhação.
"Eu me senti estuprada por ele e por Bertolucci", disse ela muitos anos depois. Ficou marcada pela cena, pela nudez, pela violência. E pela consciência de sua dolorida fragilidade.
Ela tinha 19 anos. Dia desses, vi uma foto recente de Maria. Continuava bela. Desgastada, esgarçada, mas inquietante. E bela. Não pintava os cabelos. Debaixo de tênues caracóis grisalhos, era uma derrotada de olhar nobre. Devastada, mas íntegra, ou quase
Depois do filme, a carreira de Bertolucci deslanchou de vez - e com justiça: "Último Tango" é um filme belíssimo.
A carreira de Marlon Brando ganhou um voo sem fim: afinal, naquele mesmo ano ele filmou "O Poderoso Chefão" e confirmou que era um gênio da interpretação.
Podia ter sido o ano do nascimento definitivo de uma atriz inquietantemente jovem e bela e ousada. Mas, não: foi o ano em que Maria começou a morrer, morrer uma morte que só acabaria semana passada, em Paris.
Sempre em Paris.
E fico me perguntando: terá ela, no derradeiro momento, se lembrado da ponte, ali pertinho do metrô Passy, e das ruas, e do apartamento vazio e do rio Sena, e de tudo?
De 1972 e até morrer, em 2004, Brando só falou com Bertolucci uma única vez. Com Maria, nunca mais.
Com Bertolucci, Maria nunca mais falou. Quando ela morreu, ele disse: "Pena que nunca mais pude abraçá-la. Eu queria ter pedido perdão".
Há um excesso de 'nunca mais' nessa história.
Maria viveu na beira do abismo. Não perdoou jamais. E, para ela, tão bela e tão jovem e tão frágil, não houve perdão.
Eric Nepomuceno é escritor, autor de "Coisas do Mundo" (Companhia das Letras), "O Massacre" (Planeta) e "Antologia Pessoal" (Record).
Por Eric Nepomuceno - Para o Valor, do Rio - 11/02/2011
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