quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Durante o verão, os cariocas devem jogar 9.750 toneladas de detritos na areia, um retrato da poluição das praias do Rio

 RIO - O carioca se orgulha do casamento de seu espaço urbano com a natureza. Pois aqui e ali, a cidade que nasceu desse matrimônio não parece tão maravilhosa. Um dos maiores símbolos são as praias. Na areia, sobram poucas espécies nativas, que se nutriam da vegetação de restinga (quase erradicada) e da matéria orgânica que vinha da água (varrida como outros dejetos). Andar descalço à beira-mar pode tornar-se um problema de saúde. Agentes transmissores de dermatites e intoxicações alimentares estão presentes nas fezes de animais, no esgoto lançado in natura, no lixo trazido pelo mar. As medições de qualidade da areia realizadas pela Prefeitura até identificam a poluição, mas não os parasitas.

Assista ao vídeo sobre poluição nas praias

O carioca gosta da praia limpa. Até aplaude os garis que, em menos de três horas, no dia 1º de janeiro, apagam de Copacabana os vestígios do Réveillon. Ainda assim, durante o verão, devem jogar 9.750 toneladas de detritos na areia, suficiente para encher um prédio de 30 andares. Não há ecossistema - nem casamento - que resista.

Definição de areia limpa é imprecisa

Não existe um padrão nacional para definir "areia limpa". O Rio foi o primeiro município brasileiro a arriscar uma definição. Seguindo uma recomendação do Conselho Nacional de Meio Ambiente, a Prefeitura instituiu, em 2000, uma resolução determinando qual seria a densidade máxima de coliformes totais toleráveis na areia.

A iniciativa, assinada pela Secretaria municipal de Meio Ambiente (Smac), deveria ser revisada em dois anos, quando passaria a considerar, também, a presença de parasitas. A nova resolução, no entanto, só foi divulgada no ano passado. E, assim como a versão original, também ignorou a presença de fungos, vermes e que tais.

- A secretaria foi de vanguarda ao lançar uma legislação específica que trata sobre a areia, mas ainda há muito o que melhorar - alerta Adriana Sotero, pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz. - Quando trabalhamos com análise de risco à saúde, outros elementos, além de níveis colimétricos, devem ser considerados.

Em vez de expandir o levantamento, a Prefeitura - junto à uma empresa terceirizada, contratada para medição da qualidade da areia -, restringiu-o e, teoricamente, facilitou a classificação da areia de uma praia como "limpa". Na resolução de 2000, todos os grupos de coliformes fecais colhidos numa amostragem eram analisados. Agora, estuda-se apenas a densidade de uma espécie - a bactéria Escherichia coli, associada a fezes de animais, como cães, pombos e ratos. Sua ingestão causa intoxicações alimentares.

A medição, além disso, também admite uma presença bem maior da E. coli. Em 2000, sua densidade máxima poderia ser de 400 NMP/100g (leia-se: 400 números mais prováveis por 100 gramas de amostra). Dez anos depois, este índice tolerado pulou para 3.800 NMP/100g.

Gerente de monitoramento de água e ambientes costeiros da Smac, Vera Lúcia de Oliveira não descarta que o órgão pode ter ficado mais "benevolente" com a poluição na areia.

- Pode até ser que isso tenha acontecido. Se foi assim, é porque, antes, estávamos restritivos demais - assinala. - Já acumulávamos quatro anos de monitoramento da areia. Passamos esses dados para uma empresa, que foi a responsável por instituir os novos índices estatísticos. Quando foi decidido que consideraríamos apenas uma espécie, avaliamos que seria possível instituir um aumento na frequência com que ela aparece.

Para que o estudo possa detectar o mais fielmente possível as transformações da praia, o ponto de coleta da areia é sempre o mesmo. Os fiscais da prefeitura chegam ao local por aparelho GPS, traçam um retângulo de dois metros quadrados em volta e retiram uma amostragem de cada vértice, além de outra do meio.

A classificação, embora cercada de cuidados, não traz muitas surpresas. As praias voltadas para a Baía de Guanabara têm, invariavelmente, pior resultado do que as oceânicas. A areia costuma ser mais limpa na Zona Oeste, especialmente em Grumari, Prainha e Reserva. Na outra ponta - do ranking e da cidade -, as ilhas de Paquetá e do Governador são os endereços onde a poluição da areia é mais crítica. Na orla da Baía, de acordo com pesquisadores, a água fica mais represada. São regiões até alcançadas por correntes, embora elas contem com uma intensidade muito menor do que a vista nas praias oceânicas.

- As praias de Baía têm uma faixa de areia muito estreita, que sofre ainda mais com a chegada do lixo que boia na água - explica Vera. - A classificação das praias pode variar, de acordo com o modo e a frequência de sua utilização. A Praia de Ramos, por exemplo, quase não recebe banhistas. Por isso, embora seja voltada para a Baía de Guanabara, sua areia costuma ser limpa.

O estudo, porém, tem lá as suas zebras. A Praia do Diabo, a preferida dos cachorros e repleta de fezes, tem boas avaliações. O Leblon, próximo à Rua Visconde de Albuquerque, também costuma apresentar bons resultados, mesmo sendo vizinho de um canal que joga detritos na água. Segundo Vera, isso acontece porque a coleta da areia ocorre em uma faixa próxima à água, mas não banhada por ela; logo, os contaminantes existentes no mar não interferem nas medições da areia.

Além da Smac, a Fiocruz realiza um monitoramento independente de quatro praias - duas na Ilha do Governador, duas em Paquetá. Em três anos de trabalho, as condições sanitárias desses endereços praticamente não mudaram: a quantidade de coliformes, fungos e parasitas encontrada nas medições é sempre superior à tolerável.

Coordenadora da pesquisa, Adriana Sotero percebeu como a qualidade da areia depende de muitas influências.

- A ligação de rede de esgoto clandestina à rede fluvial, o que o leva a desaguar na areia das praias, é um desses fatores - lembra. - A carga de lixo orgânico deixado pelos banhistas também é crítica, já que ela atrai animais, inclusive ratos, à noite. As fezes desses bichos podem contribuir com parasitas. Assim, aumenta-se o risco de transmissão de doenças e ainda damos oportunidades para o crescimento dos micro-organismos.

Segundo Adriana, a sujeira trazida pelo mar também pode contribuir com a baixa qualidade sanitária da areia, principalmente no período de marés.

Nas praias em que atua, a pesquisadora não registrou um período em que os índices de poluição sejam menores, em relação aos vistos no resto do ano. Ainda assim, ela acredita que o verão demande mais cautela dos banhistas.

- Por ser período de férias escolares, trata-se da época em que as praias são mais frequentadas - destaca. - As crianças acabam mais sujeitas aos riscos, e este grupo, como os idosos, são os mais vulneráveis ao contato com agentes transmissores de doenças.

Não raro a qualidade da areia é pior que a da água - principalmente na faixa não banhada pelo mar. Sentar-se sobre uma canga e usar calçados neste trecho são, de acordo com Adriana, cuidados "altamente recomendados".


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