A leitura
crítica, correndo o risco de cair em uma explicação simplista, embora correta,
é a mera opinião de um leitor acostumado a ler muitos livros sobre a qualidade
de determinada obra literária
Alexandre Lobão*
O que torna
esta leitura valiosa é justamente apresentar a opinião de um leitor que estará
analisando o original à procura de falhas, examinando detalhes que passariam
despercebidos a um leitor desatento.
Para as
editoras, esta opinião é essencial para poder selecionar os originais de melhor
qualidade do conjunto de dezenas de obras que, todos os dias, chegam às suas
mãos.
Para os
escritores, é essencial poder contar com a análise de um leitor que não dará
sua opinião simplesmente para agradar - pelo contrário, alguém que está pronto
para mostrar os problemas em sua obra. Obviamente, tais comentários só são
úteis para aquele que está aberto a críticas e que vá efetivamente promover
revisões para corrigir os problemas apontados.
COMO É REALIZADA A LEITURA CRÍTICA
Avaliar um
original, seja um quadro, uma composição musical ou um livro, é sempre uma
tarefa subjetiva. Por mais que tentemos objetivar a análise, dividindo a obra e
analisando-a sobre diferentes aspectos, ainda assim sempre resta uma grande
dose de subjetividade, sendo portanto o resultado, em última instância, uma
visão pessoal do avaliador.
Obviamente,
as opiniões do leitor crítico se baseiam em sua experiência como leitor e,
inevitavelmente, podem ser influenciadas por seu gosto pessoal; de forma que sua
opinião não é um atestado de qualidade (ou de falta desta); mas sim um ponto de
partida para que o autor veja sua obra por outros olhos e possa, caso desejado,
burilá-la para torná-la mais palatável ao leitor.
Não há um
manual para isso, mas de maneira geral o leitor crítico irá conscientemente ou
inconscientemente avaliar o original por diversos diferentes aspectos, como por
exemplo:
■ Coesão ou Continuidade: A coesão se
refere à integração entre frases, parágrafos, capítulos, e tramas do livro,
indicando se o autor consegue manter uma narrativa onde os elementos estão
sempre conectados, que facilita a leitura, ou se dá “pulos” que podem vir a
confundir o leitor. Um exemplo simples de problema de continuidade: em um
parágrafo vemos o protagonista buscando resolver um problema, e no seguinte ele
agindo como se o problema não existisse, sem nenhuma pista como foi resolvido.
Normalmente, se o leitor precisa retornar e reler alguma parte do texto para
entender a conexão entre as duas partes, ou se ele não entende a passagem de um
ponto para outro da trama, estamos enfrentando um problema de continuidade.
■ Consistência: A
consistência se refere à qualidade da obra de manter a mesma “voz” ou forma
narrativa em sua totalidade, ou dentro de cada trama que eventualmente
justifique “vozes” diferentes. Por exemplo, se a narrativa está sempre em
primeira pessoa, e em determinada parte ela passa à terceira pessoa sem
justificativa para tal, isso é um problema de consistência da voz narrativa.
■ Coerência: A coerência se refere à
capacidade do autor de criar uma realidade coerente para sua história, sem
“surpresas” que pareçam não se encaixar na realidade apresentada. Está
intimamente ligada à suspensão da descrença. Os erros de coerência por vezes
são fáceis de descobrir, mas se a narrativa ocorre em algum local ou tempo
exótico, podem ficar bastante escondidos, sendo perceptíveis apenas aos
leitores mais atentos ou experientes. Os erros podem ser básicos, como uma
pessoa comum, classe média, utilizar um celular em uma trama que se passa no
final dos anos 80; ou bem mais sofisticados, como incluir cavaleiros com “armaduras
reluzentes” no século VI, quando as armaduras eram criadas basicamente com
couro.
■ Concisão: A
concisão se refere à qualidade do texto de ser conciso, não apresentando
“pontas soltas” ou divagações que não contribuem para a história como um todo.
Também é conciso o texto que evita rodeios e que não peca pelo excesso de
detalhes, que impactam no ritmo da leitura. Obras comerciais raramente possuem
narradores dados a arroubos poéticos ou filosóficos, com raras e honoráveis
exceções o narrador e os personagens devem se ater ao que é necessário para o
desenvolvimento da trama.
■ Clareza: A
clareza indica se o texto é ou não facilmente lido. Textos rebuscados, com
excesso de palavras eruditas ou excesso de detalhes interrelacionados pecam
pela falta de clareza, embora a falta de clareza por si só não possa ser usada
como um indicativo da qualidade da obra.
■ Cadência: A
cadência, ou ritmo, do texto é resultante da velocidade de leitura sugerida
pela fluidez e clareza do texto, e pela organização das tramas e capítulos. A
cadência está associada a diversas outras características do texto, incluindo a
concisão e a consistência. Um texto que seja bom em outros aspectos, mas que
tenha uma cadência ruim, leva o leitor a ter a impressão de que as coisas
demoram a acontecer, que a ação não se desenvolve. Embora ter uma cadência
lenta possa ser recurso narrativo válido, os autores novos usar isso com
cuidado, sob a pena de cansar os leitores antes que eles cheguem à essência da
obra. Um exemplo clássico desta abordagem pode ser visto em O Nome da Rosa,
onde Umberto Eco deixou claro que as primeiras centenas de páginas são
deliberadamente lentas para “transportar o leitor à velocidade com que as
coisas aconteciam na Idade Média”.
■ Correção: O
leitor crítico não indica os erros ortográficos, gramaticais ou de
concordância, ele simplesmente irá indicar que a obra necessita de revisão.
Embora as editoras normalmente contem com revisores, e este problema
isoladamente não afete a avaliação geral da obra, o escritor deve estar ciente
que uma obra com muitos erros de português pode desanimar os avaliadores da
editora, fazendo-os desistir da leitura nas primeiras páginas.
“A grande diferença entre um escritor amador e um profissional é que o
escritor amador acha que uma ideia inspirada basta, e o profissional sabe que a
ideia também precisa ser inspiradora”.
James McSill, Consultor literário internacional, assessor de autores e cirurgião de texto (story doctor)
James McSill, Consultor literário internacional, assessor de autores e cirurgião de texto (story doctor)
■ Diagramação: A avaliação da diagramação
só é avaliada pelo leitor crítico quando o original é enviado a ele já
diagramado (o que não é muito comum), e quando esta diagramação é significativa
para a obra. Algumas regras básicas se aplicam, como, por exemplo, evitar
grandes trechos em itálico ou negrito, que dificultam a leitura da obra. Além
disso, diagramações que demandem algum cuidado especial em cada página, como
utilizar fontes diferentes para tramas diferentes, devem ser usadas com muito
cuidado, pois, além de encarecerem a produção da obra (o que pode desestimular
algumas editoras), demandam uma revisão cuidadosa, posto que qualquer erro pode
comprometer a compreensão do leitor.
■ Linguagem: A avaliação da linguagem ou
“voz narrativa” visa indicar se há alguma característica específica da
linguagem que se destaca no livro, e que com isso ajuda ou prejudica a leitura.
Por exemplo, um livro com uma linguagem carregada de regionalismos pode ser
interessante se a história se passa na região onde seu uso é comum, mas pode
soar estranho se a história não é regionalista, parecendo que o escritor não
tomou o cuidado de evitá-los.
Além dos
pontos acima, uma boa leitura crítica irá apresentar uma conclusão com os
principais aspectos que chamaram a atenção do leitor, que apresenta sua opinião
sobre quais são os pontos fortes da obra e o que falta – caso falte algo – ao
original para que fique “pronto para ser entregue” a uma editora.
Um dos
pontos mais importantes desta conclusão é o veredicto do leitor crítico sobre a
capacidade do texto de criar e manter a chamada “suspensão da descrença”,
também chamada de “pacto de verossimilhança”.
Este pacto
é na verdade o somatório de todas as características comentadas anteriormente,
indicando se o original consegue garantir a apropriada imersão do leitor na
obra, ou se, por algum motivo, o leitor se sente “de fora” da narrativa em
alguma parte do livro.
Ao iniciar
um livro, o leitor – seja ele crítico ou não – está com a mente no mundo real,
onde não há escolas de magia, monstros no jardim ou discos voadores. Se o texto
consegue levar o leitor a “aceitar” a realidade apresentada, por absurda que
seja, o escritor conseguiu “suspender a descrença” do leitor nesta realidade.
Ele aceita que, na realidade do livro, aqueles pontos absurdos são verdadeiros.
E se em
algum momento o livro quebra esta aceitação, salta aos olhos do leitor que a
história é falsa, usualmente com resultados frustrantes. E, se um livro atende
de maneira perfeita a todos estes pontos, ainda assim há um elemento essencial
a ser avaliado, a alma de qualquer história: vale a pena contá-la? Ela é
original, única, inspiradora?
É como
Pablo Neruda dizia, de maneira simples mas cheia de profundidade: “Escrever
é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No
meio você coloca ideias”. Porque seguir regras é fácil, complicado é
justamente conseguir atingir o âmago do leitor.
*Alexandre Lobão é Escritor e roteirista da Casa de Autores.
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