O Supremo em seu momento
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Com o julgamento, os ministros do Supremo deixarão um legado político relacionado a várias questões; c omo pano de fundo, haverá uma discussão sobre o foro privilegiado |
São os 11 ministros que integram o Supremo Tribunal Federal (STF), homens e mulheres de notório saber jurídico, como exige a Constituição, alguns de hábitos simples, outros frios e quase inacessíveis e vários de pavio curto, muito curto.
Junte-se a isso o fato de que estará em audiência o maior escândalo político do governo passado e está pronta a receita para o julgamento do PT (e dos mensalões do PSDB e do DEM de Brasília), mesmo que as bases em que se assentar o voto de cada um forem eminentemente técnicas. Trata-se de um julgamento inédito, com sessões a partir de 2 de agosto, uma quinta-feira, como inédito foi o mensalão, um escândalo que derrubou o alto clero da Câmara dos Deputados, algo também nunca visto antes.
O Supremo já teve sobre sua mesa casos de impacto talvez até maior, que consumiram muita energia, saber jurídico dos ministros e que afetaram para sempre os costumes dos brasileiros. Exemplos bem recentes são a união homoafetiva e o aborto de anencéfalos. Outros definiram o futuro da medicina, como o que autorizou pesquisas com células-tronco. Mas há um legado político a ser deixado por esses 11 homens e mulheres ao final do julgamento, como a definição de um entendimento sobre lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção e gestão fraudulenta de instituições financeiras. Como pano de fundo, ainda uma discussão sobre o foro privilegiado.
O mensalão - Ação Penal 470 - é um processo com mais de 50 mil páginas, 234 volumes e 500 apensos. Trata, como se sabe, de um suposto esquema de compra de votos que o PT teria montado na Câmara dos Deputados, entre 2004 e 2005, para aprovar projetos de interesse de governo. Envolve gente graúda, desde o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e o ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha, até donos de banco, passando por secretárias, como Anita Leocádia, que trabalhava para o ex-deputado Paulo Rocha (PT-CE) e fez saques na conta do mensalão.
Antes mesmo do primeiro voto, a voz mansa do criminalista e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos levantará uma "questão de ordem" no tribunal - a competência do Supremo para julgar réus sem foro privilegiado. Casos como o do ex-ministro José Dirceu e do ex-deputado Paulo Rocha, que perderam mandatos, além de outros que nunca tiveram o privilégio de ser sentenciados diretamente pela suprema corte.
Entre os parlamentares acusados de pertencer à "quadrilha" dos 40 mensaleiros, hoje apenas três cumprem mandato na Câmara: João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar da Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-MT).
O Supremo, numa primeira abordagem, já recusou o argumento de Bastos, mas a promessa de um dos mais importantes criminalistas do país de tratar do assunto sob uma "nova perspectiva" não deve ser descartada de antemão, pois o assunto ainda motiva alguns ministros da Corte.
Primeira mulher na história da Suprema Corte dos Estados Unidos, Sandra Day O'Connor esteve na Praça dos Três Poderes, em 1998, para conhecer o STF. Então presidente da Corte, o ministro Celso de Mello reuniu o plenário e perguntou à juíza: "Se um ministro da Suprema Corte americana cometer um delito, ele será julgado pelo próprio tribunal?" Sandra O'Connor respondeu sem titubear: "De modo algum. Ele será julgado pelo primeiro grau". Mello lembra-se da declaração da juíza: "Ela respondeu como se fosse uma coisa espantosa que casos como esse sejam julgados pelo Supremo".
Resolvida a questão de ordem, falará o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, para fazer a acusação que poderá durar até cinco horas da sessão inicial. Em seguida, falarão os advogados de defesa, que terão uma hora cada um. Na sequência, os ministros do Supremo Tribunal Federal começam a proferir seus votos.
Para o Supremo, o julgamento é uma oportunidade para desfazer a ideia de corporativismo que a população possa ter sobre o tribunal
Um dos 11 homens e mulheres que conseguiram chegar ao topo mais elevado da carreira e um dos votos sobre os quais há muita expectativa, o decano Celso de Mello elabora filigranas jurídicas - seus votos costumam ser longos, às vezes de até cinco horas - com o mesmo prazer com que é capaz de passar a tarde em um shopping center, comer hambúrguer com o entusiasmo de um adolescente e ficar horas folheando páginas na Livraria Cultura.
A primeira a votar depois do relator, Joaquim Barbosa, e do revisor, Ricardo Lewandowski, será a ministra Rosa Weber. É enorme a curiosidade sobre sua sentença, pois Rosa Weber foi uma escolha pessoal da presidente Dilma Rousseff para o STF - com a simpatia de sua filha e do ex-marido. Nos primeiros contatos com integrantes da banca de notáveis criminalistas que atuam no mensalão, a noviça da corte mostrou-se tão indecifrável como a esfinge.
Num intervalo de sessão do STF, Rosa Weber foi abordada por um dos advogados criminalistas que atuam no caso. A conversa durou cerca de 15 minutos. "Ela é de uma frieza glacial", contou, mais tarde, a amigos. "Saí de lá sentindo frio." A reação dos ministros, porém, não é necessariamente um sinal de como eles votarão em cada caso. Será recebido como natural se Rosa Weber votar pela absolvição de um réu mesmo tendo tratado seu advogado de maneira gélida, tanto quanto se Britto, Fux e Mello o condenarem.
Quase sempre, os que procuraram falar com os ministros, nessas semanas que antecedem o julgamento, encontraram interlocutores afáveis, como Carlos Ayres Britto, atual presidente do Supremo, Luiz Fux, que tem recebido advogados de gravador em punho (a justificativa do ministro é que não quer perder da memória nenhum dado da conversa), e Celso de Mello, que a mais de um assegurou que o julgamento do mensalão não será um "linchamento".
O ministro Cezar Peluso, indicado para o Supremo mais pelo fato de ser originário do Tribunal de Justiça de São Paulo do que por vontade de Lula, votou "raivosamente" na sessão de recebimento da denúncia contra os mensaleiros, no entendimento de réus e advogados em geral. No entanto, hoje nem seus auxiliares mais próximos sabem como vai votar.
O maior pesadelo da presidente Dilma Rousseff é ter que substituir Peluso durante o julgamento - ele se aposenta obrigatoriamente ao completar 70 anos em 3 de setembro. É duvidosa sua participação no julgamento. Mas ele pode pedir para votar antecipadamente.
São muitos os exemplos de surpresas que um ministro do STF é capaz de apresentar no momento de declarar seu voto
São muitos os exemplos das surpresas que um ministro do Supremo é capaz de apresentar.
Ayres Britto foi parar no tribunal por indicação - acatada pelo ex-presidente Lula - de um trio de juristas de esquerda: Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato e Celso Antonio Bandeira de Melo.
Aliás, o atual presidente do Supremo foi também candidato a deputado pelo PT. Mas quando José Dirceu entrou com um mandado de segurança para barrar seu processo de cassação do mandato, o voto de Britto estava contabilizado na coluna dos que mantiveram o processo na Câmara, ou seja, contra Dirceu.
Exemplar é o caso de Gilmar Mendes, indicação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, talvez o ministro mais criticado e execrado pelo PT: Mendes foi o responsável pelo desempate em favor do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci quando o Ministério Público Federal pediu a abertura de processo contra ele no caso da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa.
Antes da criação do ultrassom e do aumento da precisão dos institutos de pesquisa, os políticos costumavam recitar a máxima segundo a qual "voto de juiz, barriga de mulher e urna, só depois do resultado". Atualmente, talvez, só cabeça de juiz continua sendo um mistério. Talvez, porque é possível inferir a votação de um ministro do Supremo, por exemplo, pela corrente jurídica a qual é associado.
As divisões no STF se dão, basicamente, por causa de duas correntes de pensamento distintas na corte. A primeira é conhecida como "garantista". É composta por ministros que acham fundamental assegurar o direito de ampla defesa aos acusados e somente aplicar punições nos casos em que a descrição do crime e suas provas são claras.
A segunda corrente é a do combate à impunidade. Nela estão ministros que acreditam que o tribunal deve dar respostas mais rigorosas contra políticos envolvidos em casos de corrupção e aqueles que se incomodam com o fato de o STF ser visto por muitos críticos como um cemitério de ações contra autoridades.
Os maiores expoentes da corrente "garantista" são Gilmar Mendes, José Antonio Dias Toffoli e Celso de Mello. Mas, em alguns casos, Mello vota contrariamente aos políticos, quando entende que as provas são contundentes.
A corrente do combate à impunidade tem Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia Antunes Rocha como os maiores expoentes. Há, contudo, ministros que ora aderem a decisões de caráter "garantista" e ora impõem punições aos políticos, como Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski. Em muitos casos, eles costumam ser o fiel da balança.
Por fim, Luiz Fux e Rosa Weber são os mais recentes na corte e, como participaram de menos julgamentos, fica difícil antecipar o teor de seus votos.
Será uma batalha entre defensores do simples debate de direito penal e os que querem impor moralidade à administração pública
O mensalão levará os ministros a discutir questões jurídicas em meio a pressões políticas e da opinião pública. Será uma batalha entre aqueles que querem fazer um debate puro e simples de direito penal e os que consideram legítimo também o tribunal se posicionar no espírito da lei, mas, segundo interpretação mais ampla, sobre princípios de moralidade e condutas na administração pública.
"É o processo penal mais importante da história do Supremo", diz o ex-ministro Francisco Rezek, que ocupou uma cadeira na corte de 1983 a 1997 - período interrompido apenas quando, de 1990 a 1992, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Collor de Mello. "Como processo penal tão relacionado ao contexto político, ele atrai atenção coletiva. É isso que faz o caso do mensalão ser um processo extremamente importante, mas dentro de suas limitações de processo penal", opina Rezek, para quem outras questões sociais, territoriais e de costumes tiveram "importância infinitamente maior" para a sociedade brasileira.
Na retrospectiva do Supremo, o mensalão poderia ser comparado ao julgamento do ex-presidente Collor, em 1994. Os debates consumiram sessões extraordinárias iniciadas de manhã e que avançaram noite adentro - num dos dias, os debates prosseguiram até pouco antes das 23h. Mas enquanto o caso Collor não chegava a uma dezena de réus, no mensalão são 38 os remanescentes dos 40 denunciados originalmente (um deles morreu, o ex-deputado José Janene, e o ex-secretário-geral do PT, Silvio Pereira, fez acordo e cumpre pena comunitária).
O jogo político por trás do julgamento é intenso, como se vê no episódio da conversa que teria ocorrido entre Lula e o ministro Gilmar Mendes
Além disso, a complexidade da acusação, no caso Collor, era menor e se baseava principalmente no crime de corrupção. "Na esfera penal, o Supremo quase funcionou como um juizado de pequenas causas", diz Rezek, dando ideia da dimensão mais restrita do caso Collor em relação ao mensalão. Na época, Rezek se declarou impedido por ter sido ministro das Relações Exteriores do governo Collor.
Marco Aurélio Mello, ainda na ativa, fez o mesmo devido ao parentesco com o ex-presidente.
Um ministro declara-se impedido de votar quando julga que há conflito de interesses. Ninguém deve se surpreender se o Ministério Público, que fará a acusação, arguir a suspeição de Toffoli, indicado por Lula para o tribunal.
Antes de assumir a Advocacia Geral da União, no primeiro mandato de Lula, Toffoli já advogara para o PT e era próximo do ex-ministro José Dirceu. Mas o ministro votou em todas as questões preliminares do mensalão, numa indicação de que pretende participar da decisão principal. Petistas como Luiz Marinho, prefeito de São Bernardo do Campo, hoje um dos políticos mais ligados a Lula, já declararam publicamente que ele não tem por que se declarar impedido.
Dois dias depois do encontro, Mendes chamou um amigo a sua casa e relatou a conversa que tivera com o ex-presidente. Demonstrava aborrecimento, pois entendera que Lula queria chantageá-lo, pois lhe oferecera "proteção" na CPI do Cachoeira. Em troca, Mendes trabalharia para que o julgamento do mensalão fosse adiado para depois das eleições municipais de outubro.
Há muita controvérsia em Brasília sobre o encontro. A conversa, sem dúvida, é mais um dos eventos que jogam contra o STF na votação do mensalão. Também não ajuda o fato de dois ministros, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandovski, terem trocado e-mails discutindo a votação durante a sessão em que o tribunal aceitou a denúncia contra os 40.
O Supremo chega ao julgamento pressionado por episódios como esses, e também pelo fato de que nove entre os 11 ministros foram indicados pelo PT, e mesmo pelas controvérsias recentes entre Peluso, ex-presidente do tribunal, e Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça. "Esses episódios deixaram uma visão de que o Supremo seria uma corte corporativista, voltada para a defesa de seus próprios interesses", diz o cientista político Rodrigo Nunes, da universidade americana de St. Edward's.
Será o julgamento do PT e do governo Lula, e dos mensalões do PSDB e do DEM, mesmo que o voto de cada juiz tenha base eminentemente técnica
Internacionalmente, especialistas também não se lembram de um caso de tamanha magnitude julgado por uma corte suprema. Grandes processos penais contra estadistas em outros países foram individuais ou alcançaram número pequeno de pessoas. Na França, um dos casos criminais de maior repercussão política envolveu o ex-chanceler Roland Dumas e outra penca de réus, acusados de participação em um esquema de corrupção na petroleira francesa Elf. Nada parecido em tamanho com o mensalão.
O escândalo de corrupção envolvendo a empresa americana Lockheed nos anos 1970, por suborno de políticos para a compra de aeronaves, atingiu diversos países, como Japão, Holanda e Itália, e gerou processos penais volumosos contra dirigentes importantes. Na Itália, a Suprema Corte condenou o então ministro da Defesa a 28 meses de prisão. O comandante da Aeronáutica também foi condenado.
Mais uma vez, a complexidade nem sequer se aproxima do julgamento do suposto esquema de compra de votos na Câmara brasileira.
Para o Supremo, o julgamento do mensalão é uma oportunidade para desfazer a ideia de corporativismo que a população eventualmente tenha sobre o tribunal. Não será a primeira.
Era quase meia-noite de sexta-feira, semanas antes do julgamento que definiu a abertura da ação penal do mensalão, em agosto de 2007, quando a ministra Ellen Gracie, então presidente do STF, assistiu a uma reportagem na televisão que mostrava que a corte não condenara um político sequer desde a promulgação da Constituição de 1988.
Ellen Gracie não gostou do que viu e ouviu. A reportagem associava o STF à impunidade. Ela então convocou assessores para uma reunião no dia seguinte, um sábado pela manhã, em seu apartamento no fim da Asa Sul de Brasília.
A conversa foi áspera. A ministra perguntou sobre as informações relatadas na reportagem. Uma das assessoras quase chorou: explicou que jornalistas haviam pedido o número de punições, no Supremo, a políticos. A resposta foi zero. O estrago na imagem da corte estava feito.
Em meio ao impasse na reunião, Ellen Gracie pegou o celular e ligou para Luiz Shiyoji Tommimatsu, assessor-chefe do plenário. Ele aparece todas as quartas e quintas-feiras na TV Justiça, mas é uma das pessoas mais discretas do STF. Senta-se ao lado do presidente e é responsável há anos pela organização da pauta. Apesar de exercer uma tarefa essencial ao dia a dia da corte, Luiz é invisível à opinião pública. O timbre de sua voz é desconhecido de quem acompanha as sessões.
Naquela manhã de sábado, o eficiente assessor ouviu uma ordem direta da ministra-presidente e passou a cumpri-la de imediato. Dali em diante, o STF julgaria ações penais, de preferência envolvendo políticos, todas as quintas-feiras. Estavam inauguradas as chamadas "quintas penais".
Foram necessários mais de três anos, a partir daquela ordem da ministra Ellen Gracie, para o STF condenar um político. Isso se deu apenas em 13 de maio de 2010 - um dia que, de certa forma, reduziu a imagem de que a Justiça está aliada à impunidade. O réu foi o deputado José Gerardo Oliveira de Arruda Filho (PMDB-CE), ex-prefeito de Caucaia, no interior o Ceará. O crime, desvio de verba de um açude. A pena: dois anos e dois meses de prisão. A punição foi convertida em pagamento de 50 salários-mínimos e prestação de serviços comunitários. Ou seja, não houve cadeia.
Nenhum político foi preso pelo STF até hoje. No caso do mensalão, ninguém sairá algemado do Supremo, no fim do julgamento. O tribunal deverá levar ainda um tempo desconhecido para aplicar as penas.
Valor Econômico | Juliano Basile, Maíra Magro e Raymundo Costa | De Brasília
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