O relógio marca 15h e o já confuso trânsito de Botafogo ganha contornos ainda mais caóticos. Na Rua Real Grandeza, uma fila monocromática de utilitários esportivos ocupa uma faixa da via à espera de alunos de um colégio da elite. No meio do tráfego, dá até tempo para puxar conversa com o motorista de um Land Rover Discovery que aguarda o herdeiro do patrão. Depois do papo sobre o utilitário, a indagação é quanto ao desempenho no fora de estrada. A resposta é direta e previsível:
- Esse jipão aqui nunca andou na lama - reconheceu o motorista - Acho que nem pegou estrada de terra.
Os utilitários de butique são apenas um dos exemplos das particularidades do mercado brasileiro. Ainda existem a ditadura das cores neutras - 70% dos carros saem em tons (e variações) de preto e cinza - e a obsessão pela configuração sedã de modelos compactos e médios. Isso sem falar na mania por versões com quatro portas.
- O mercado brasileiro não é generalista, pois tem muitas ondas. Antes, só taxista usava automóvel quatro portas, e branco era cor de carro de frota, por exemplo - destaca o consultor Paulo Roberto Garbossa, da ADK Automotive. - Quem trabalha no mercado brasileiro trabalha em qualquer um. Aqui, é preciso ter flexibilidade e respostas rápidas.
Os utilitários esportivos são um exemplo desses modismos. Se tornaram os queridinhos do mercado. Nos últimos dez anos, a venda desse tipo de veículo quintuplicou no país. Mas se nos Estados Unidos e na Europa eles fazem jus ao nome "utilitário", para transitar principalmente em locais de nevasca, por aqui servem geralmente para desfilar ou por supostamente oferecerem mais segurança.
- O utilitário trouxe vantagens reais: posição de dirigir mais alta e sensação de mais segurança com o conforto de uma minivan - defende Gustavo Colossi, diretor de marketing da General Motors.
O Kia Sportage 2008 de Simone dos Santos Paiva, de 41 anos, ilustra bem essa "utilidade". Cansada de levar fechadas nas ruas ou de ser ignorada por vans ao volante de compactos na Ilha do Governador, onde mora, a organizadora de eventos optou por uma minivan Citroën Xsara Picasso. Depois, migrou para um Ford EcoSport, que foi trocado pelo Sportage Agora, Simone planeja a compra da nova geração do SUV sul-coreano, ainda este ano:
- Queria me sentir mais segura e mais respeitada. Quando tinha um carro hatch, só faltava me jogarem na calçada.
A experiência de Simone resume as tais ondas migratórias do mercado brasileiro, onde o utilitário esportivo virou também uma espécie de veículo da família, rótulo que as minivans roubaram das station wagons no início dos anos 2000. Só que o habitat natural da Sportage da insulana é o asfalto. Ela usa o modelo basicamente para transitar pelo bairro, ir ao mercado, ao shopping e levar os filhos à escola. O mais perto que chegou de uma trilha foi durante uma viagem a um hotel fazenda em Saquarema, na Região dos Lagos. Uma experiência que pode ter sido única.
- Era uma estrada de terra bem acidentada, o Sportage foi bem, mas não quero colocá-lo de novo num lugar assim. Tanto que nem voltei ao hotel - admite Simone.
Nos anos 70 e 80, era possível contar nos dedos os carros quatro portas à disposição. Automóveis nesta configuração eram de luxo ou táxis. Hoje, o cenário é outro - e inverso. Poucas são as opções com duas portas.
As razões para isso passam por conforto, mas também por aspectos sociais e até culturais. Aqui, mais de 60% dos clientes têm apenas um carro por família - na Europa, a maioria tem dois ou mais veículos na garagem.
Além disso, casais europeus têm menos filhos. E eles não costumam ficar grudados aos pais depois de atingir a maioridade. No Brasil, é prática comum andar de carro com filhos, genros, netos, tias, sogras e papagaios...
- Em uma família com quatro pessoas, já faz diferença ter um quatro portas - defende Henrique Sampaio, gerente de marketing da Volkswagen. - Na Europa, são poucas pessoas no carro. E eles são muito racionais nesse sentido.
De carona nas quatro portas está o gosto desenfreado por sedãs. Eles existem em segmentos nos quais esse tipo de carro é impensável na Europa. Não somente entre compactos, mas também entre os médios. Modelos como Renault Mégane ou Citroën C4 não dão origem a sedãs na maioria dos mercados do Velho Mundo.
Só que, no Brasil, a configuração faz sucesso por ser considerada, também, um indício de ascensão social.
- Aqui, o sedã é um símbolo de status acima do hatch. É o degrau superior na compra de um automóvel - analisa Henrique Sampaio.
A imagem, aliás, é o que permeia tais peculiaridades do consumidor. É o carro que vai sinalizar as conquistas e o sucesso do cliente. E ilustrar isso para os vizinhos.
- No Brasil, o carro tem muita simbologia de conquistas. É o termômetro de "onde se está". É diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde o motorista compra o carro pensando em si e não nos outros - compara Marcelo Fantini, responsável pela área de pesquisas da Fiat.
E essa imagem, geralmente, é monocromática. É verdade que o consumidor daqui está menos resistente a cores vivas. Mas, mesmo assim, sete em cada dez carros vendidos, em média, são de tons neutros. O prata é a maioria.
- O consumidor acha que não vai cansar da cor. E que será mais fácil de revender um carro de tom neutro - observa Fantini.
Alguns carros sentiram isso na pele - ou melhor, na lataria. O vinho metálico do lançamento do Fiat Palio e o azul claro do Citroën C3 não fizeram sucesso. Em outras palavras, encalharam. Ultimamente, modelos com maior apelo de estilo conseguem vencer tal conservadorismo. No novo Uno, o índice de cores vivas é de 45% - na manjada família Palio, o número cai para 30%.
Tons excêntricos fazem sucesso em modelos pseudo fora de estrada. No Volks CrossFox, o laranja que lembra os antigos carros da Telerj representa 4% das vendas, enquanto o amarelo responde por 5% - diante do total, é algo considerável no mar de prata.
- O laranja era cor de lançamento, mas agradou e ficou - explica Henrique Sampaio.
Aliás, esses jipes de butique (automóveis de passeio que ganham penduricalhos fora de estrada) são outrs particularidade do Brasil. Trata-se de um nicho que está muito mais atrelado à imagem do que aà praticidade.
Os atentos marqueteiros de plantão perceberam em pesquisas que 95% dos proprietários de utilitários jamais tinham usado o sistema 4x4. Foi o pretexto para o nascimento da linha Fiat Adventure, do Ford EcoSport e afins.
-Não é uma escolha racional, mas um carro para quem não quer passar desapercebido - Diz Nívea Ferradosa, diretora de marketing da Citroëm, que celebra as boas vendas do Aircross (cerca de 1.500 unidades por mês).
Para passar a imagem de aventureiro sem exercê-la, vale a embalagem. Por isso, esses veículos têm os mais variados enfeites. O mais emblemático é o estepe na tampa traseira, espécie de "cracha off road". Nesta nova ordem, a credencial é mais usada em shoppings do que na lama.
O Globo - Fernando Miragaya
Nenhum comentário:
Postar um comentário