Em 1996, quando chegou aos cinemas, o filme "Terra Estrangeira", de Walter Salles e Daniela Thomas, retratava um Brasil marcado pela descrença no futuro. O ambiente era o dos meses seguintes ao confisco da poupança pelo governo de Fernando Collor, em 1990. Naqueles dias de desesperança, o aeroporto, isto é, emigrar para o "primeiro mundo", parecia uma solução (a realidade do outro lado não se mostraria luminosa como prometia).
Passados 15 anos, o que se vê é o Brasil crescer como polo de atração de imigrantes - condição historicamente estabelecida, mas hoje explicitada com maior ênfase. A esperança, agora, está aqui, inclusive para brasileiros que retornam de experiências frustradas no exterior.
Já é conhecido o aumento do número de pedidos de visto de trabalho para engenheiros, chefs de cozinha e executivos de multinacionais. Mas trabalhadores sem qualificação, imigrantes não raro ilegais, também se tornam expressivos. Segundo o Ministério da Justiça, foram cadastrados em 2011, até abril, 1.459.433 estrangeiros que vivem no Brasil legalmente. Também no ano passado, quando o governo anunciou a anistia para residentes não documentados, 43 mil pessoas se apresentaram para regularizar a situação. No total, 5 milhões de estrangeiros entraram no país em 2010 (incluídos os em trânsito), com um acréscimo expressivo em relação aos 3,8 milhões de 2009 e os 3 milhões de 2008.
A demografia da globalização, intensificada nas últimas décadas, registra 214 milhões de pessoas vivendo fora de seus países, segundo o Relatório Migratório Internacional de 2010, da Organização Internacional para a Migração (OIM). O número inclui migrantes, executivos de multinacionais, refugiados, clandestinos e corresponde a 3% da população do planeta.
Esse contingente se divide quase perfeitamente em três grupos, segundo Demetrios Papademetriou, diretor-presidente do MPI (Migration Policy Institute), em Washington. São cerca de 70 milhões de pessoas oriundas de países ricos vivendo em outros países ricos; 70 milhões de originários de países em desenvolvimento em países ricos, ou o oposto; e 70 milhões que deixaram países em desenvolvimento para outros países em desenvolvimento.
O equilíbrio dessa distribuição numérica tende a ser rompido pela descoberta da vocação receptora do mundo emergente - onde o Brasil se destaca pela relativa rapidez com que se desvencilhou da crise recente. O primeiro motivo dessa atratividade é a instabilidade renitente nos países ricos. Muitos migrantes que partiram nas décadas anteriores, quando a prosperidade estava concentrada nessas economias, decidem voltar a seus países - são os "retornados da crise", nas palavras de Sueli Siqueira, socióloga da Universidade do Vale do Rio Doce, em Governador Valadares, Minas Gerais. O crescimento veloz explica, da mesma forma, o fato de a Rússia ter se tornado recentemente o segundo país com mais estrangeiros residentes, de acordo com a OIM. São mais de 10 milhões, atrás apenas dos 43 milhões nos Estados Unidos.
Outro motivo é o recrudescimento das barreiras nos países tradicionalmente receptores. Migrantes barrados acabam se instalando em países como o México e o Brasil. Segundo Papademetriou, porém, os emergentes não estão prontos para receber o mesmo fluxo migratório que a Europa, os Estados Unidos e o Japão. "Faltam a infraestrutura legal e a infraestrutura institucional."
Se o Brasil se tornar novamente um país receptor de grandes migrações, haveria razão para se perguntar se as cenas de xenofobia, comuns na Europa e nos Estados Unidos, se reproduziriam aqui. Outro fenômeno que poderia ser importado é a emergência de partidos populistas, que se aproveitam da ansiedade pela chegada de estrangeiros para impor medidas restritivas. "Certamente, vai haver xenofobia", prevê Dirceu Cutti, editor da revista "Travessia", do Centro de Estudos Migratórios. "De migrante pobre e em quantidade, ninguém gosta. Mesmo quem defende é capaz de se trair no discurso." Cutti, que acompanha a integração de imigrantes no mercado brasileiro, é crítico quanto à posição que as sociedades locais oferecem a quem migra em busca de oportunidade. "O imigrante só se justifica no trabalho. Saiu do trabalho, é melhor se esconder."
"Terra Estrangeira" explora esse deslocamento. Nas palavras de Sueli Siqueira, o período da migração é "um tempo de invisibilidade social, medo de deportação e uma vida restrita à comunidade étnica". O filme apresenta o universo da migração em suas diversas facetas: o sonho da terra distante, a condição arriscada de quem não tem lugar fixo, o confronto com uma sociedade que não o recebe de braços abertos. Desenraizado, clandestino, usurpador, a imagem do migrante é cercada de fantasias. Segundo Sueli, as migrações são "uma peça-chave para a compreensão da formação das sociedades, das identidades culturais e do desenvolvimento do capitalismo".
O volume de pessoas que cruzam fronteiras para se instalar, definitiva ou temporariamente, em nações estrangeiras tende a se expandir. A OIM calcula que haverá 450 milhões de pessoas vivendo fora de seus países em 2050. O crescimento se inscreve na lógica da globalização, de acordo com o cientista político Giuseppe Cocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No plano geopolítico, "as migrações sempre foram um fenômeno determinante, e vão continuar sendo. Deve-se vê-las como processos de constituição pela diferença, não pela identidade". Nos livros "GlobAL" (escrito em parceria com o filósofo Antonio Negri) e "MundoBraz", Cocco apresenta o fenômeno migratório contemporâneo como linha de fuga de populações diante dos poderes estabelecidos. Quando trabalhadores e suas famílias se incorporam a economias ricas, as transformações que provocam são profundas. "As migrações são o terreno de constituição de uma autonomia que torna obsoleta qualquer teoria econômica determinista do mercado do trabalho."
Para Sueli, as migrações concretizam o desejo de mudança através de uma força incontrolável. "Não adianta construir muros. Os migrantes vão sempre passar, mesmo que muitos morram no caminho. Se muro adiantasse, a China nunca teria sido invadida. Tinha um oceano entre os peregrinos ingleses e os Estados Unidos, mas eles atravessaram."
Segundo Papademetriou, o controle da imigração é uma questão de regulação interna aos países receptores. "Se conseguirmos controlar a imigração indesejada, poderemos abrir para a desejada. É a ilegalidade, a sensação de caos, que queremos remover."
Os migrantes se inscrevem na tendência contemporânea de redesenho das soberanias, segundo Cocco. O Estado-nação, forma por excelência da soberania desde o século XVIII, perde espaço com a mundialização dos mercados financeiros, os acordos transnacionais e o movimento de trabalhadores.
"A reação do poder é violenta, mas não existem mais as bases nacionais a partir das quais essa reação conseguiria se afirmar e sustentar".
Trata-se de dinâmicas que se fazem por circulação e mestiçagem, que dificilmente o poder consegue isolar e controlar como gostaria.
Para John Skrentny, diretor do Centro de Estudos Comparativos de Imigração, da Universidade da Califórnia, as notícias da morte do Estado-nação são exageradas. "Vínculos globais e uma economia mundializada reduzem a importância do Estado-nação, mas ainda não estamos lá. Os impostos são coletados pelos Estados, as leis ainda são, na maioria, criadas no âmbito do Estado e os benefícios são, em geral, concentrados nos cidadãos."
A presença do estrangeiro é mais amplamente percebida indiretamente, pelas reações que provoca e pelo imaginário que a cerca. Nas narrativas históricas da fundação de diversas nações modernas figuram migrações e mestiçagens. Os êxodos estão na origem não apenas de países como Brasil, Argentina e Estados Unidos, formados pela imigração de europeus, muitas vezes violenta, pela apropriação de terras aos habitantes "autóctones" - africanos, se a escravidão for encarada como uma migração forçada - e asiáticos. Também os países mais cientes de sua pureza étnica brotaram da semente da migração: os países europeus descendem de "invasões bárbaras" (conhecidas na Alemanha como "período migratório"), de conquistas árabes na Península Ibérica e na Sicília, de invasões vikings e da chegada de povos asiáticos, como os magiares da Hungria.
"Não é verdade que os países europeus são feitos de uma única etnia", argumenta Papademetriou. "A Alemanha só se unificou em 1871 e as divisões internas não eram só étnicas, mas também religiosas e linguísticas. Se um alemão disser 'somos todos alemães', está distorcendo a verdade: o país se compôs com muitos poloneses, italianos e eslavos, que se incorporaram à etnia que passou a ser chamada de alemã."
Os fluxos migratórios podem ser explicados, a distância, por impulsos econômicos e políticos: escapar da miséria, construir uma vida melhor, fugir de ditaduras e perseguições. A xenofobia e o recrudescimento dos controles de fronteira seriam epifenômenos da entrada de mão de obra mais barata em economias nas quais o trabalho é um custo considerável. Mais de perto, porém, a movimentação de populações pelo globo evoca ideias que deixam o campo das necessidades concretas e envereda pelo universo das emoções e do imaginário. As pesquisas de Sueli Siqueira sobre a intensa corrente migratória entre a cidade mineira de Governador Valadares e os Estados Unidos, a partir dos anos 1970, revelam que o impulso de migrar se origina na imagem de um mundo distante, em que o acesso a bens de consumo é amplo e fácil.
"Comparo esse imaginário a uma visita ao shopping quando não se tem dinheiro. Não dá para comprar as roupas, mas pode-se sentar à mesa, sentir o ar-condicionado, olhar a vitrine e participar de um mundo rico", explica a socióloga. Os migrantes gostam de transmitir aos parentes que ficaram na terra natal a impressão de que estão no melhor dos mundos, mesmo quando vivem em situação precária. Ao voltar, procuram expressar o máximo possível de prosperidade.
Mesmo os migrantes que deixam suas casas porque são obrigados, em casos de guerras e desastres naturais, se expressam em termos emocionais. Na ilha de Lampedusa, primeiro ponto de acesso à Europa para quem parte do norte da África, um refugiado tunisiano reagiu à notícia do controle enrijecido na França com uma frase lapidar: "Se a França fechar as fronteiras, vamos para a Alemanha e, se a Alemanha se fechar, vamos para a Espanha, porque somos clandestinos".
Nas disputas em torno dos fluxos contemporâneos de migração, sobressai, do lado dos países receptores, a angústia pela enxurrada de pessoas inesperadas. Essa angústia pode ser manipulada por correntes políticas e descambar para a xenofobia, velada ou explícita. Esse fenômeno acomete a Europa, onde controles de fronteira estão sendo ampliados e o tratado Schengen, que elimina as barreiras ao fluxo humano entre os países europeus signatários, é questionado pela primeira vez. "Os políticos sabem que é preciso receber imigrantes, eles olham para seus dados demográficos e veem que a população parou de crescer", lembra Papademetriou. "Casos como a expulsão dos ciganos da França por Nicolas Sarkozy são jogadas políticas, com os bodes expiatórios de sempre", diz Skrentny. "O perigo é que isso está virando uma tendência."
O debate europeu sobre imigração ganhou fôlego em abril, quando a França restabeleceu o controle sobre trens vindos da Itália. O governo de Sarkozy acusou os italianos de conceder vistos a tunisianos que fugiam de seu país, aproveitando o relaxamento do controle sobre a emigração após a revolução de janeiro. Em maio, o governo dinamarquês também se manifestou pela revisão do tratado. A Suíça rapidamente se juntou ao coro.
"Nos Estados Unidos, a chegada dos imigrantes é vista assim: o primeiro ato dessas pessoas ao entrar em solo americano é violar a lei", segundo Skrentny. "Os migrantes têm uma relação com o Estado difícil de determinar. Não são inteiramente cobertos pela lei do país. Poderíamos evocar os direitos humanos, mas a fundação jurídica deles é menos estável do que a das leis. É como uma festa: de repente, aparecem pessoas que não foram convidadas. Mesmo que estejam esfregando o chão, os convivas se perguntam: quem são esses? Não importa quão heroicos sejam ao cruzar a fronteira ou quanto contribuam para a economia. São vistos como outsiders."
O conflito entre a imigração como fenômeno do imaginário e como realidade se manifesta, segundo Skrentny, na diferença de discurso e de tratamento a migrantes de carne e osso. "As pessoas expressam muita oposição à migração ilegal, querem deportações e repressão. Mas, na vida real, interagem de maneira amigável", relata Skrentny. "As pessoas que cortam a grama, pintam a casa e cuidam das crianças podem ser imigrantes ilegais e, nesse caso, é fácil enxergar o rosto do ser humano. Até políticos que propõem restrições mais duras são flagrados usando o serviço de imigrantes ilegais nos Estados Unidos."
Papademetriou põe o Brasil ao lado dos Estados Unidos como país que, pela formação multiétnica, se adapta melhor aos imigrantes. "Somos mais relaxados com a diferença. Temos algo, que faz parte da nossa corrente sanguínea, que nos permite incorporar melhor as mudanças. Os europeus se veem como algo que vem do passado. Brasil e Estados Unidos são países que prosperam pela mudança. Temos brigas terríveis por causa da imigração, mas elas nunca vão dar em partidos que discriminem sistematicamente. Serão sempre apenas grupelhos."
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