sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Lamy ataca exigência de conteúdo local para carros no Brasil

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, mostra inquietação com a nova política comercial brasileira, mais defensiva. E especialmente com uma medida adotada pelo país: a exigência de conteúdo local nos automóveis produzidos no país. Ele não diz explicitamente, mas para as regras da entidade isso é ilegal. O temor na OMC é que, pelo peso do Brasil, outros países copiem a medida protecionista num cenário econômico globalmente já complicado.
"Supondo que é preciso desenvolver a indústria automotiva no Brasil, há uma série de medidas possíveis para isso - melhora da produtividade, qualificação, infraestrutura -, mas o que vejo sobretudo é exigência de conteúdo local'', afirmou Lamy, em entrevista ao Valor, na véspera da conferência ministerial que trará mais de 60 ministros a Genebra, amanhã e sexta-feira.
Os ministros Antonio Patriota, das Relações Exteriores, e Fernando Pimentel, do Desenvolvimento, estarão em Genebra, a partir de hoje, insistindo na necessidade de introdução de câmbio nas regras da OMC. Mas Lamy deixou claro que ninguém está pedindo esse tipo de negociação e avisa, mais uma vez, que o tema de divisas é com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Ele critica a gestão da crise da zona do euro e nota que a Europa terá crescimento fraco por cinco anos. A dúvida é se isso pode se estender por até dez anos. Somado à crise nos EUA, no Japão e menos crescimento na China, o resultado é que a economia do Brasil também está fragilizada.
Lamy observa que a desaceleração econômica está ocorrendo em todo lugar, não poupando ninguém. E que o único indicador que não está em linha com o que se diz em todo lugar é o mercado de matérias-primas. Pelo momento, não caiu fortemente, o que ele julga ''surpreendente e curioso''.
Nesse cenário, o diretor da OMC aponta fragilidade do comércio exterior do Brasil, com as commodities representando agora 65% das exportações, comparado a cerca de 40% há dez anos.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Como o sr. vê o desfecho da crise na Europa?
Pascal Lamy: Há uma crise mundial, que piora. Mais o tempo passa, mais a crise afeta todo mundo. Ninguém está imune à crise, que se agrava. Uma das razões do agravamento é que ela é mal gerida coletivamente. Há uma crise global, e nela há outra, que é a crise de gestão da crise. E o que se passa na Europa é nada mais que um laboratório, como ela, aliás, sempre foi. É o único sistema de poder supranacional, sério. Veja o que se passa no mundo e chegará a essa conclusão. Só que na Europa isso se vê mais, porque já é constituída como um conjunto supranacional.
Valor: Ou seja, é a crise de 2008 que se aprofunda.
Lamy: Claro. E uma das razões principais de aprofundamento da crise é que a capacidade de administrá-la coletivamente diminuiu. Sabemos, porque há uma crise no interior da crise. Para cooperar no plano internacional é preciso muito mais energia política, mais do que é necessário no plano nacional. A legitimidade é uma função de proximidade. Se um prefeito quer fazer algo ele está em relação direta com as pessoas e seus problemas. Em nível de nação é mais complicado. O problema é que a crise, que provoca turbulências e sofrimentos econômicos e sociais, reduz a legitimidade dos governos a fazer coisas em geral, e no plano internacional, em particular.
Valor: O fato é que a crise está centrada na Europa atualmente....
Lamy: Está focada na Europa, porque há um teatro europeu, que é muito animado. O nível de endividamento da Europa não é pior que o dos EUA ou do Japão. No Japão, faz dez anos que isso dura. Na Europa, os governos têm muita dificuldade para reinventar o pacto de estabilidade, depois de tê-lo quebrado em 2003. Quando criaram a união monetária e econômica, sabiam que ela era monetária, mas não muito econômica. Inventaram na época o pacto de estabilidade, que era um sistema de disciplina fiscal e orçamentária, e foi o que os alemães conseguiram então. Em 2003, Jacques Chirac [que era o presidente francês] e Gerhard Schröder [chanceler alemão na época] quebraram o pacto de estabilidade. Agora, os países-membros estão reinventando o pacto em situação difícil, porque se produz essa sinergia temível entre a dívida soberana e a saúde do sistema financeiro. Como os bancos têm muitos títulos soberanos em seu portfólio, se a dívida soberana tem problemas, os bancos também têm problemas. É preciso adotar medidas duras, tipo bazuca, e é muito complicado. Mas a situação na Europa não é fundamentalmente diferente do que se passou no Japão e do que pode ocorrer nos Estados Unidos.
Valor: O que falta é o Banco Central Europeu agir de fato como emprestador em último recurso?
Lamy: Não é o essencial. Nem a cultura europeia, nem os estatutos do BCE, nem a posição europeia na economia mundial oferecerão soluções, dizendo que basta imprimir moeda. É preciso fazer reformas. Na Itália, não foi imprimindo moeda que Mario Monti conseguiu reduzir o prêmio de risco.
Valor: Ou seja, é uma questão de credibilidade?
Lamy: Absolutamente.
Valor: O que o FMI pode fazer para socorrer a Europa?
Lamy: A economia é de tal tamanho que o FMI não pode salvar a Europa. São os europeus que podem salvar a Europa.
Valor: Mas como sair da crise? Os governos tomam decisões e os mercados dizem ser insuficientes. Parece um confronto entre mercados e governos.
Lamy: Não sou um apóstolo muito convencido do capitalismo de mercado. Mas se você pega dinheiro emprestado junto a alguém, não pode acusá-lo de se preocupar em ser reembolsado. Se os Estados não querem estar nas mãos do mercado, então que não peguem emprestado dos mercados. É política de botequim esse comportamento, que consiste em fazer "road show" em Londres, na segunda-feira, para convencer os investidores financeiros a comprar seus títulos de dívida, e reagir, acusando os mercados de especuladores, quando na terça-feira os mercados questionam se essa dívida é tão boa como foi dito.
Valor: Mas como os europeus vão sair dessa situação?
Lamy: Não creio que a zona do euro vai explodir. Não digo que a probabilidade (de explosão) é zero, como teria dito há dois anos. A zona do euro vai perdurar. Mas o que significa para o resto do mundo é que a Europa terá crescimento fraco pelos próximos cinco anos. A incerteza é se será por cinco ou dez anos. O problema é encontrar o bom mix de políticas. É evidente que é preciso reduzir a dívida, portanto cortar despesa publica e aumentar impostos, senão não há saída. Mas, ao mesmo tempo, quanto menos crescimento, mais tempo demorará a saída da crise.
Valor: Como ficará a Europa a duas velocidades? Um país, o Reino Unido, está agora isolado, fora do acordo de disciplina fiscal.
Lamy: Mas sempre houve uma Europa com várias velocidades. O euro é um sistema com várias velocidades, o Schengen [convenção entre países europeus sobre abertura das fronteiras e livre circulação de pessoas] também, assim como programas de pesquisa etc. Não é uma novidade.
Valor: O que parece claro é que a União Europeia terá de falar mais alemão no futuro.
Lamy: A Alemanha é o maior país da Europa desde a reunificação, tampouco isso é novo.
Valor: Quais as perspectivas para os EUA e o Japão?
Lamy: O Japão toma muito tempo para sair da crise. E os EUA vão ter de resolver seu problema de dívida só imprimindo o dólar, porque há limite para isso. O problema está diante de nós.
Valor: O que se pode fazer globalmente para buscar soluções para a crise?
Lamy: Estamos num sistema interdependente, e essa interdependência tem virtudes, se a explorarmos. Caso não a exploremos, os inconvenientes são maiores que as vantagens. Veja o que aconteceu em Durban [na negociação de acordo sobre mudança climática], apesar do esforço do Brasil.
Valor: Mas lá houve um pequeno acordo.
Lamy: (pausa). É mesmo?
Valor: O mercado aponta a China como futura ameaça para a economia global. Há risco de aterrissagem forçada da economia chinesa?
Lamy: Numa economia global, se a Europa tem crescimento fraco, o resto do mundo é afetado. Mas a China vai controlar a redução de seu crescimento. Sua dívida pública é de apenas 25% do PIB. Passar de 10% a 8% é perfeitamente controlável. Mas é claro que dois pontos percentuais a menos de expansão é muito. É verdade que os chineses são menos dependentes da Europa e dos EUA do que há dez anos. Quando EUA, Japão e Europa são atingidos, é metade do crescimento mundial que é afetado. Mas, no momento, a desaceleração econômica está ocorrendo em todo lugar.
Valor: Pode-se esperar da China menos exportação e mais importação?
Lamy: Sim. É a política chinesa. Estive com o presidente Hu Jintao e ele repetiu que a política é de equilibrar a economia com mais crescimento interno e menos exportação.
Valor: Mais queda no comércio global será inevitável em 2012?
Lamy: Sem dúvida. Diante das cifras de crescimento global, não vejo como o comércio em volume poderá aumentar mais do que este ano. Deve-se esperar menos do que este ano [a projeção da OMC é de 5,8% em 2011].
Valor: E com isso mais desemprego, mais disputas comerciais...
Lamy: Claro, claro. O único indicador que não está em linha com o que se diz em todo lugar é o mercado de matérias-primas. Pelo momento, não caiu fortemente, o que é surpreendente e curioso de um certo ponto de vista.
Valor: Para o Brasil, cujas exportações são em 65% compostas de commodities, a situação é complicada.
Lamy: Sim, é frágil. Mas para se tomar o caso da China, que é importante nesses 65% de exportação do Brasil, se os chineses elevarem o consumo interno, vão precisar importar commodities.
Valor: A China é uma oportunidade ou uma ameaça para países como o Brasil?
Lamy: Em chinês, oportunidade e ameaça têm o mesmo ideograma. Estive ontem [segunda-feira] na China para a comemoração dos dez anos da entrada do país na OMC. Sua política é de continuar a abertura. A China aumentou suas importações em 20% ao ano, nos dez anos como membro da OMC. É um percentual que nenhum outro país no mundo fez. Eles estão mudando o modelo. Mas leva tempo. Seu superávit exterior diminuiu e nos próximos anos será menor.
Valor: Como a OMC vê a nova política comercial brasileira, mais defensiva?
Lamy: É claro que as autoridades brasileiras resistem menos a pressões protecionistas do que no passado. Isso está explicitado no nosso monitoramento. É um fato. A questão é se é problema da relação de força que mudou, de forças protecionistas mais fortes do que as não protecionistas, ou uma política global de desenvolvimento do Brasil que não é mais a mesma. Eu não tenho resposta a isso. As informações que recebo não respondem claramente a essa questão.
Valor: O governo responsabiliza o câmbio, o real valorizado.
Lamy: Mas a taxa de câmbio é submetida a muitas variáveis. Por exemplo, a taxa de juros no Brasil. Se os juros são elevados, em geral atraem capital, sobretudo quando se diz que se luta contra a inflação. Ou seja, isso não é totalmente límpido. Quando vejo políticas comerciais adotadas pelo Brasil, deixo de lado instrumentos de defesa comercial - antidumping, salvaguardas -, pois todo mundo tem direito de fazer isso, se correspondem aos procedimentos da OMC. Mas restam ainda medidas de conteúdo local bastante evidentes. Supondo que é preciso desenvolver a indústria automotiva no Brasil, há uma série de medidas possíveis para isso - melhora da produtividade, qualificação, infraestrutura -, mas o que vejo sobretudo é exigência de conteúdo local.
Valor: O sr. está preocupado com essa postura do Brasil?
Lamy: Sim. E é claro que há risco de outros países copiarem o Brasil. No momento não vejo outros países exigindo conteúdo local, afora a Argentina, mas há um risco. Esse tipo de política pode levar outros a fazer a mesma coisa.
Valor: O sr. vê espaço para se começar a negociação de regra que leve em conta variação cambial no comércio internacional?
Lamy: Mas temos regras. Temos o artigo 15 do Gatt [que trata de medidas de câmbio], que nunca foi testado em contencioso. E o Brasil quis reiniciar essa discussão, estamos rediscutindo.
Valor: Há chance de negociação de regra sobre câmbio na OMC?
Lamy: Não estamos lá. Ninguém disse que é preciso submeter aos ministros um mandato de renegociação do artigo 15. Nunca ouvi isso de ninguém. Mas há uma discussão sobre o tema e ninguém se opôs quando o Brasil a propôs.
Valor: O sr. se surpreende com o rechaço do Brasil a eventual acordo para congelamento de tarifas de importação, às vésperas da ministerial da OMC?
Lamy: Quando vejo a evolução recente da política comercial brasileira, estou menos surpreso do que estaria há dois anos. Sobre o ''standstill'', não há definição precisa do que é protecionismo na OMC. É um problema de interpretação.
Valor: Na ministerial desta semana, a Rússia entrará na OMC. Há risco de a OMC ficar ainda mais ingovernável, já que a Rússia não tem costume de respeitar regras?
Lamy: É claro que a Rússia precisará de um tempo de adaptação, como ocorreu com outros. Mas o fato de a Rússia ter aceitado disciplinas multilaterais é algo bom para todo mundo. A Rússia teve 18 anos para se preparar, mesmo se a preparação, como no caso da China, foi mais ativa nos últimos anos. Mas os dois casos não são comparáveis. A relação da Rússia com a economia internacional é totalmente diferente daquela da China.
Valor: A Rússia entra na OMC como país desenvolvido e com direito a dar mais subsídios agrícolas por vários anos.
Lamy: Deixo a você a responsabilidade de considerar que a Rússia entra como país desenvolvido. Sou um dos raros a ter lido todo o protocolo de adesão e não vejo em lugar nenhum a Rússia dizendo que é país desenvolvido. Os compromissos que assumiu são, no geral, dez anos depois da China, mais duros do que aqueles assumidos pela China em alguns pontos, como na redução de tarifas e mesmo subvenções, e em certos setores de serviços. Na OMC, ser desenvolvido ou em desenvolvimento, é o país que decide. A Coreia, a Turquia, são, ao mesmo tempo, desenvolvidos e em desenvolvimento, a OMC é bastante tolerante, contrariamente à sua reputação.
Valor: Quando o sr. fala da necessidade de definir que tipo de contribuição emergentes, como Brasil, China e Índia, deveriam dar numa rodada, agora ou futura, não seria criar nova categoria de membros?
Lamy: Não. Não temos categoria de países na OMC, a não ser os PMA (países mais pobres), com tratamento especial e diferenciado.
Valor: Mas os emergentes deveriam pagar mais, fazer abertura comercial maior?
Lamy: Se você olhar os países que na negociação industrial devem adotar a fórmula [de corte tarifário], verá que não é para todos. Mas não significa criar categoria de países.
Valor: Mas o Brasil, em qualquer negociação comercial na OMC, passará a pagar mais…
Lamy: Mais que o Camboja. O mundo mudou, todo mundo reconhece. O Brasil nunca disse que quer ser tratado como Quênia ou Senegal na Rodada Doha. O importante é encontrar o bom equilíbrio entre reciprocidade e tratamento especial e diferenciado. Isso é algo a ser reinventado permanentemente.
Valor: Com a economia global em dificuldade, o que a conferência ministerial da OMC pode fazer para dar algum estímulo aos negócios?
Lamy: Precisamos explicar aos ministros o que eles têm dificuldades a identificar, ou seja, quanto menos eles trabalharem juntos, mais penosa e longa será a crise. Todo mundo está de acordo que, do ponto de vista do funcionamento da economia global, mais crescimento pode vir com abertura comercial. A vantagem é que não custa dinheiro aos contribuintes e ao Banco Central. O inconveniente é que exige reformas para ser mais competitivo.
Valor: O que ocorrerá na OMC após a ministerial? Não haverá negociação no ano que vem.
Lamy: Vamos esperar o que os ministros dizem. Não vamos condená-los de antemão. É preciso que examinem toda a atividade da OMC, e não apenas negociações.
Valor: Resumindo, para os próximos anos, qual é seu diagnóstico para a economia mundial?
Lamy: Estou cautelosamente pessimista.
Por Assis Moreira | De Genebra

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